ARTIGO DE HELENA TEIXEIRA
Membro do secretariado concelhio das Mulheres Socialistas – Igualdade e Direitos de Braga. Vereadora na Câmara Municipal de Braga.
O assédio e a violência sexual têm sido tema de discussão e debate público em Portugal depois de várias figuras públicas denunciarem situações de assédio com abuso de posição de autoridade ou poder para obtenção de favor sexual. Várias foram as questões levantadas e ouvimos posições diferenciadas que muitas vezes colocam a vítima numa situação de fragilidade e o agressor numa posição de impunidade.
O movimento #Metoo foi criado em 2006 pela ativista norte-americana Tarana Burke, com o objetivo de incentivar as mulheres a mostrarem solidariedade umas com as outras, especialmente quando se tratava de casos de assédio sexual. Em 2017, este movimento ganhou uma dimensão mundial quando várias estrelas de Hollywood deram a cara e relataram situações de assédio e agressão sexual na indústria norte-americana do cinema. Com as denúncias, várias figuras importantes da indústria de Hollywood foram arrastadas para um escândalo que levou à prisão o poderoso produtor, Harvey Weinstein.
O assédio, é uma forma de violência sobre a mulher e cada mulher é dona e senhora do seu próprio corpo e ninguém além dela própria tem direito sobre o seu corpo. A mulher não tem que aceitar insinuações que não são aceites e desejadas, coação física e verbal, persistente e indesejada. A sedução não é agressão e um não, é um não. Quando a mulher não aceita e não consente tem que ser respeitada.
A denúncia exige coragem e a coragem de muitas será a coragem de tantas outras. O movimento #Metoo criou a força de que juntas somos mais fortes e podemos mudar a sociedade denunciando, não permitindo que este crime continue a ser socialmente aceite, silenciado. A sociedade reconhece que o assédio sexual é inaceitável, mas continua a proteger os agressores e a questionar as vítimas de assédio e violência sexual que na esmagadora maioria são mulheres, não vivêssemos numa sociedade ainda machista e patriarcal.
Por cá, discute-se agora a chegada do movimento a Portugal, uma vez que foram também figuras mediáticas da televisão a relatar as situações vividas no meio, utilizando as redes sociais como meio de divulgação do movimento e de denúncia, com um impacto imediato. Podemos questionar porquê só agora? Por que não denunciaram mais cedo, por que não fizeram queixa?
Podemos fazer várias perguntas, mas importa antes perceber como o problema está enraizado na sociedade portuguesa, com uma certa cumplicidade e impunidade que permite e aceita certos comportamentos.
Ninguém tem o direito de julgar e questionar uma vítima, de exigir nomes, questionar porque não denunciou antes, porque não apresentou queixa. Cabe a cada vítima escolher denunciar, escolher como e quando denunciar, todas têm direito a fazer as suas próprias escolhas pois serão elas que terão que lidar com as consequências e nem todas estarão preparadas para o fazer. O constrangimento causado pelo crime na vítima, o receio de enfrentar o agressor, a exposição da sua intimidade e o receio da revitimização associada ao processo, pode levar a que as vítimas acabem por optar pelo silêncio e impunibilidade do agressor.
Este não é, no entanto, um problema de classes profissionais, de estrelas de televisão. É um problema transversal a todos os sectores da sociedade, perpetuado normalmente por quem está numa situação de poder e controlo sobre quem está numa situação de dependência e maior fragilidade. O assédio sexual em contexto laboral assume maior gravidade do que noutros contextos, na medida em que existe uma dependência económica da mulher que precisa do emprego para sobreviver. E como não poderia deixar de ser, as mulheres em condições socioeconómicas desfavorecidas estão em maior situação de fragilidade, quer em termos de exposição ao assédio, quer na sua denúncia.
O relatório “Violência contra as mulheres”, da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA), datado de 2014, demonstra que o assédio sexual é uma experiência frequente na União Europeia e que afeta, sobretudo, o sexo feminino. O documento apurou que desde os 15 anos de idade, “uma em cada cinco mulheres foram tocadas, abraçadas ou beijadas contra a sua vontade” e que 6% das mulheres sofreram este tipo de assédio pelo menos seis vezes.
Em Portugal estima-se que uma em cada três mulheres tenha sido ou é, presentemente, vítima de assédio sexual no local de trabalho. Os comportamentos de assédio são condenados, mas condenação não é responsabilização. Este tipo de comportamento não pode continuar a ser aceite e tolerado pela sociedade.
O Código de Trabalho Português proíbe o assédio sexual, considerando-o uma contra-ordenação muito grave. A prática de assédio, por qualquer pessoa independentemente das funções que desempenha, constitui uma infração disciplinar – a aplicar à pessoa que assediou – e confere, à pessoa assediada, direito a indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais. Mas esta sanção revelou-se manifestamente insuficiente por estar em causa a violação da dignidade da pessoa humana e dos seus direitos fundamentais, havendo necessidade de criminalizar o assédio. O Código de Trabalho prevê ainda a obrigatoriedade desde 1 de Outubro de 2017, da adopção de um Código de Boa Conduta para prevenção e combate ao assédio no trabalho para as empresas com sete ou mais trabalhadores.
Em 2013, Portugal ratificou a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adoptada em Istambul, a 11 de Maio de 2011. De acordo com a chamada Convenção de Istambul, a violência contra as mulheres constitui uma violação dos direitos humanos e é uma forma de discriminação contra as mulheres, abrangendo todos os atos de violência de género que resultem, ou possam resultar, em danos ou sofrimentos físicos, sexuais, psicológicos ou económicos para as mulheres.
A convenção está em vigor em Portugal desde 2014, tendo sido o primeiro país a aderir. Em 2015, visando a transposição para o sistema jurídico português, procedeu-se ao alargamento do conceito de importunação sexual, de maneira a incluir as “propostas de teor sexual” no artigo 170.º do Código Penal, passando a ter a seguinte redação: “Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
O conceito amplo e indeterminado é manifestamente insuficiente e desajustado na criminalização do crime de assédio sexual. Passados 10 anos sobre a assinatura do tratado verificam-se retrocessos nos direitos das mulheres agravados pela crise da covid-19 sendo necessário reafirmar as disposições da Convenção de Istambul e o compromisso político de as fazer cumprir.
A condenação legal do assédio cabe à justiça, mas a mudança do que está por detrás de um problema enraizado na sociedade e tolerado há muitos séculos, caberá ao poder político, porque é preciso corrigir o que precisa de ser corrigido, educar para a mudança de mentalidades, para o respeito do individuo independentemente do seu género, condição social e económica.
Para transformar a nossa sociedade rumo ao progresso, ao desenvolvimento, ao respeito e à liberdade, é necessário reformar a educação e criar ferramentas pedagógicas como forma de prevenção e mitigação do risco de exposição ao assédio em todas as suas formas, bem como à forma de penalização que sirva pelo menos para intimidar os abusadores e agressores, uma vez que a impunidade generalizada pode levar a que estes se sintam protegidos e pouco expostos à denúncia e à condenação dos seus atos.
A semana passada foi apresentado no Parlamento o Projeto de Lei n.º 852/XIV/2.ª pelo grupo parlamentar do PAN que prevê várias alterações e aditamentos ao Código Penal e ao Código do Trabalho, estando em apreciação pública. Da proposta consta o aditamento do artigo 163º-A do Código Penal que passa a considerar que o crime de assédio sexual não está dependente de queixa, tornando-o um crime público, podendo, no entanto, a vítima a todo o tempo, requerer o arquivamento do processo.