José Peixoto completa 82 anos em janeiro, 64 dos quais passou-os a trabalhar na Fábrica Confiança, onde, literalmente, nasceu e casou; Álvaro Gomes chega aos 69 em dezembro, e 48 deles esteve ao serviço desta indústria emblemática de Braga; Francisca Barroso conta 63 anos, e 45 viveu-os por dentro da antiga saboaria e perfumaria, que este sábado assinala 125 anos com uma festa. O MINHO passeou por 157 anos (somatório dos anos de serviço destes três ex-trabalhadores) de labirintos da memória de uma das mais importantes marcas portuguesas no mundo.
Começar pelo encarregado geral não é um mau princípio, até porque a Confiança é literalmente a sua casa.
“O meu pai trabalhava na Confiança e tinha direito a uma casa da fábrica lá dentro das instalações. Eu nasci e casei lá dentro”, diz o ancião de memória afiada, sentado numa esplanada da Avenida da Liberdade, no coração de Braga, enquanto toma o ritual pequeno-almoço de sexta-feira.
É dia de limpeza semanal, e trabalho é trabalho.
“Eu conheço a rapariga que vai lá limpar a casa desde pequena, mas prefiro deixá-la a trabalhar em paz”, explica o senhor Peixoto, que entrou ao serviço em 1953.
“Entrei com 15 anos. Já tinha o corpo que tenho hoje. Comecei e ao fim de dois anos já estava à frente da fábrica. Como? Impus-me. O encarregado na altura era o senhor Luís Barbosa, que queria passear. E eu tomei conta da fábrica”, ri-se José Peixoto, que diz que precisava de cinco dias para falar da Confiança.
“Seguidos”, acrescenta.“O senhor Luís Barbosa era primo do patrão, José Peixoto de Almeida, que era filho do fundador Rosalvo da Silva Almeida [criou a Confiança a 12 de Outubro de 1894 com a firma “Silva Almeida & C.ª”, em sociedade com Manuel dos Santos Pereira, na Rua Nova de Santa Cruz, em Braga]. Ele dizia que eu era a sombra negra dele”, e volta a sorrir.
“O meu primeiro salário era de 17,5 escudos por dia. Mas passado pouco tempo já havia quem recebesse ao mês, porque na altura éramos pagos à semana como os ingleses, e eu optei pelo salário mensal. Quando casei, em 1962, ganhava 1.200 escudos e pagava 300 escudos renda. Veja lá como era a vida”, recupera o homem que acusa com generosidade o toque do “você está muito actualizado sobre a sua arte”. “Estou actualizado sobre tudo. Da vida. Leio muito, sabe. Tenho uma biblioteca e uma discoteca que são uma coisa louca. De todas categorias e estilos. A minha neta, um dia destes, disse-me: ‘avô, preciso dos Maias [Eça de Queiroz]’. Disse-lhe: anda comigo. E também queres ver o filme?”, ilustra.
“Nunca fumei, o meu vício é comprar livros, discos e filmes. E o futebol. Ia ver os jogos todos do Braga fora”, diz o sócio 23 do Sporting Clube de Braga, do qual foi dirigente 20 anos (“quando o Braga era pobre e tínhamos de andar a pedir pelas ruas” – foi entre 1986 e 2004/2005).
De volta a casa. “Sabe aquela foto das mulheres em 1944 [cedida pela Plataforma Salvar a Confiança]? O meu pai era o encarregado delas”, sublinha. O pai Manuel Peixoto e o irmão homónimo (“o meu padrinho era Manuel, mas por causa deles fiquei José”) trabalharam 50 e 62 anos na Confiança, respetivamente. “O meu irmão era contabilista”, apura.
José tem um outro padrinho com o seu nome, e já se falou aqui dele: José Peixoto de Almeida, patrão e filho de um dos fundadores.
“Em 1962, fui casado lá dentro pelo então padre Eduardo de Melo [futuro cónego e monsenhor]. O meu patrão foi o meu padrinho”, resgata.
Em 64 anos, guarda memórias labirínticas. Das boas e das menos boas. Como as grandes festas que ele próprio organizava, fosse no Natal, fossem outros momentos.
“Pouco depois de casar, montou-se a cantina, aí por 1963 ou 1964. Com o dinheiro de caixa da cantina, eu organizava os eventos da empresa, comprava roupa para se oferecer às crianças dos trabalhadores ou prendas para estes. Durante 40 anos fez-se muita coisa boa. Até excursões. Íamos dois ou três dias até Lisboa, com tudo pago pela cantina. Víamos a praia, parávamos pelo caminho e ficava-se a conhecer muita coisa”, desfia.
Tanta pujança e hoje a Confiança é uma marca do catálogo da outrora rival Ach Brito, desde 2008, depois de ter tido de deixar as históricas instalações da Rua Nova de Santa Cruz em 2005 para passar para um parque industrial em S. Mamede / Sobreposta.
“Para mim, o problema foi a má administração. Gastavam mais do que podiam. Mas nem sempre foi assim. Quando o Doutor Luís Bandeira, que é da família Espírito Santo, geriu a fábrica, fez obras, pôs um telhado novo e as contas estavam sempre certas”, lamenta, sem grandes saudosismos.
“Vou-lhe dizer uma coisa. Sabe que quando saí, no dia a seguir já não sentia falta. Nunca mais senti falta. Aliás, nunca mais lá voltei. Vai ser sábado”, diz José Peixoto, nado, criado e casado na Fábrica Confiança.
“Estive casado 55 anos. A minha mulher morreu há três anos. Ela dizia-me: ‘Vais lá ter uma estátua’. Hoje, à noite sinto-me muito sozinho. Faz-me falta. Mas eu não sou de me meter na vida de ninguém e vivo a minha vida. Nem na vida dos meus filhos gosto de me meter”, conclui. O
“senhor Confiança”, dos 125 anos da marca que deu a conhecer Portugal em todos os cantos do mundo, esteve (64 anos) na fábrica mais de metade da existência desta.
Do 75.º ao 125.º aniversários
Em 1968, Álvaro Gomes era operário numa das indústrias em que Braga deu cartas nos séculos XIX e XX: a metalurgia. Marcas como Sarotos, Pachancho ou ETMA construíram um legado que a Ramoa também ajudou a sustentar. E era aí que este homem que cumpre 69 anos em Dezembro laborava sete anos antes do 25 de Abril.
“Tinha feito um pedido e entrei para lá com 17 anos. Estive na Confiança de 8 de Abril de 1968 até 28 de Dezembro de 2015”, resume o artista que aprendeu todos os mistérios da tipografia nos quase 48 anos que ali passou.
“Fui para a tipografia como aprendiz. Saí como oficial de impressão. Cortei papel, encadernei, fiz composição. Ali, fazia-se tudo, dos rótulos para os sabonetes, às facturas e recibos”, explica Álvaro Gomes.
“Na altura, diziam as pessoas que fui substituir, a tipografia quando foi montada era topo de gama. Depois, parou no tempo. Acabou porque não houve evolução. Quando montaram a tipografia, houve aposta. Depois, não. Houve uma evolução tecnológica que não foi acompanhada. Começou a haver novos métodos, quando apareceu o off set, começaram a pedir os trabalhos fora. Diminuíram ao pessoal e já não fazia muito sentido investir. No fim, quando não havia trabalho na minha área, ia ajudar os meus colegas de outras secções”, analisa.
“Algo que me deu muito prazer foi estar lá nos 75 anos da Confiança. No ano de 1969, fez-se uma grande festa. Foi o presidente da Câmara – já não me lembro, mas julgo que ainda era o Santos da Cunha [era Viriato José Amaral Nunes, o homem que está imortalizado na estátua que recebe quem entra de carro em Braga vindo do Sul esteve à frente da autarquia entre 1949 e 1961]. Veio um ministro, já não me recordo quem. Houve música, tínhamos lá o salão de cinema, onde se faziam os almoços para o pessoal. Houve uma grande jantarada servida, salvo erro, para Lusitânia, duzentas e tal pessoas da fábrica, fora os convidados, o que era muita gente”, pontua o oficial de impressão que teve como primeiro salário 7,5 escudos por dia e que, “se Deus quiser”, estará este sábado na festa.
A namorada de Mesquita Machado
“Eu sou Mesquita [Machado, autarca de Braga entre 1976 e 2009] e continuo a ser Mesquita. A Ana Maria, como nós a chamávamos, ou dona Anita, namorava com ele, ainda ele estava longe de ser presidente ou eles de serem casados. O meu irmão mais velho, que tem 72 anos, andava na tropa, e outro também. O Mesquita Machado vinha trazer a mulher à fábrica e vinha trazer o ‘pré’ [gratificação dos militares] dos meus irmãos ao meu pai. Eu nessa altura ainda não trabalhava lá, mas era uma simpatia que nos fazia”, diz a certo ponto da conversa Francisca Barroso, 63 anos, 45 em várias secções da Confiança.
Dona Francisca faz jus ao jargão popular da cidade: “Toda a gente trabalhou ou teve pelo menos um familiar que trabalhou na Confiança”.
Tudo começou nos pais, passou pelos já referidos irmãos e prolonga-se.
“Tenho um irmão que ainda trabalha lá há mais de 30 anos. Terá 59 anos. Os nossos pais é que arranjavam trabalho”, contextualiza.
Para Francisca Barroso, a entrada na Confiança dá-se no emblemático ano de 1974, tinha a antiga trabalhadora 17 ou 18 anos (saiu a 5 de Janeiro de 2018).
“Quando foi o 25 de Abril, faziam-se greves e manifestações. Quando passava a RTP, subíamos a uma bancada e abríamos o vidro. Quando vinha o encarregado, batíamos com a janela para disfarçar. Um dia, partimos o vidro. Dissemos ao encarregado que tinha sido a RTP”, ri-se.
“Eu trabalhava há ano e meio ou dois anos na Camisaria Oliveira, em frente. E o meu pai, que trabalhava na Confiança, um dia disse-me: ‘amanhã vais trabalhar na nossa Confiança’”, relembra.
E assim foi.
“Era assim que chamávamos a Confiança, nossa”, explica.
E recupera: “O meu pai trabalhou lá, um tio, casado com uma irmã da minha mãe, também. E ainda um irmão do meu pai, que era viajante [vendedor], que ia para Angola”.
“O meu primeiro ordenado foram 450 escudos à quinzena, 900 por mês. Era uma das empresas que pagava melhor”, rememora Francisca Barroso.
“Lavava caixas, levava o trabalho às mesas das outras senhoras que já lá trabalhavam. Era o trabalho de canalha, como dizíamos. Depois, passei para a zona dos acabamentos, dos sabonetes brancos. Seguiu-se a parte das máquinas, o sabão. E ajudar o senhor da cartonagem, o senhor que fazia caixas. Eram cinzentas, a matéria prima vinha em placas, muito pesadas, pareciam restos de papel, restos de jornais. O senhor tinha uma máquina de rolos. A máquina, uma prensa, fazia lotes – os fardos de papel. Na empresa fazia-se aproveitamento de papéis e prensava-se depois para ganhar peso. Era papel de escritório e de uso geral da fábrica. No fundo, era uma enfardadeira para, como agora dizemos, reciclar”, avança.
“Muito à frente? Então não estava? Tinha médico para familiares e meninos dos trabalhadores, que era o Doutor Leitão. Eu não sou desse tempo. Mas ainda tem lá a porta que diz consultório. As letras foram desaparecendo. Tinha a creche, iam para lá os meninos de algumas empregadas. Havia duas banheiras grandes para as senhoras darem banhos semanais. Tinha de haver higiene. Os senhores já tinham chuveiros. Havia a sala de espectáculos. Tinha um cinema onde faziam festas de natal para os trabalhadores – ainda não trabalhava lá, mas já ia buscar prendinha, até aos 14 anos, depois era até aos 10”, relembra Francisca Barroso.
“Tinha muito gosto naquilo que fazia. E tenho muito gosto em dizer que trabalhei na Confiança. Trabalhei muitos anos, já acabou. Gostei do tempo que trabalhei, soube bem. E recordo os tempos que lá passei. Espero ir à festa de sábado”, adianta.
E fala sobre o imbróglio das instalações – que passaram a ser do município em 2012, por entendimento do executivo então liderado por Mesquita Machado e a oposição liderada por Ricardo Rio, actual presidente, e estão na iminência de serem vendidas a privados sem se saber exactamente para que finalidade.
“Eu gostava era de ver a fábrica. Nunca mais a vi. Quer dizer, fomos ao [restaurante] Abadia D’Este nos 120 anos e no fim passámos lá. O senhor Firmino [Marques, vice-presidente que seguirá nesta legislatura para deputado na Assembleia da República] disse que ia tomar conta disto. Tenho é saudades dos sítios e das pessoas com quem trabalhei. Muito sinceramente, vou-lhe dizer uma coisa. Há tantos estudantes… Andam a chupar os estudantes, podiam fazer umas casas e alugar a preços acessíveis. E a Câmara se calhar até ganhava dinheiro”, projecta.
“Agora anda de um lado para o outro. Se fizerem um centro cívico que seja para benefício da cidade, há que aproveitar. Se der lucro, ainda melhor”, concluiu.