Francisco Sande Lemos, ex-diretor da Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho (UAUM), foi um dos principais responsáveis pelo “Salvamento de Bracara Augusta”, projeto arqueológico que se iniciou no ano de 1976 e permanece ativo nos dias de hoje. Inúmeros monumentos e imóveis de interesse público foram descobertos nestes 45 anos.
Com três décadas da sua vida dedicada ao “Salvamento de Bracara Augusta”, enquanto arqueólogo e diretor da UAUM, Francisco Sande Lemos reflete, neste entrevista, a sua opinião sobre os sucessos e as falhas do projeto arqueológico que descobriu a Fonte do Ídolo, a Domus das Carvalheiras e o conjunto das Colinas da Cividade.
Qual a dimensão patrimonial de Braga?
Braga é uma cidade com mais de dois mil anos de História. De todas as fases dessa longa História, conservam-se numerosos e significativos testemunhos. Da Proto-História à época Contemporânea, passando pelo Alto Império Romano, Antiguidade Tardia, Idades Média e Moderna.
Qual a importância da escavação de “Bracara Augusta”?
As escavações de “Bracara Augusta”, que se realizam continuamente desde 1976, data em que principiou o Projeto de Salvamento, foram essenciais. Para registar os vestígios da urbe fundada pelo imperador Augusto, na transição da Era Cristã. Mas também evidências da Antiguidade Tardia (sécs. IV-VII) e da Idade Média.
A partir de 1976 adquiriu-se um conhecimento cada vez mais amplo acerca de uma das três cidades fundadas, pelo Império Romano, no Noroeste da Península Ibérica, Bracara Augusta, as outras duas são Asturica Augusta e Lucus Augusti.
No século IV, Bracara Augusta alcançou o estatuto de capital de Callaecia, uma vasta província que englobava o atual Norte de Portugal, a Galiza, as Astúrias e mesmo parte da Cantabria. Na época suévica foi sede do reino que se estendeu para Sul, talvez até ao rio Mondego. O Reino Suévico foi um dos primeiros estados cristãos da Europa Ocidental.
Quais os principais impedimentos à escavação, preservação e valorização do património arqueológico de Braga?
O principal problema das escavações de “Bracara Augusta” tem sido o escasso financiamento, mal crónico, após um momento inicial, no final dos anos 70, em que o Estado apoiou o lançamento do projeto. Se os salvamentos têm sido quase sempre financiados pelos promotores imobiliários, as escavações ditas programadas, que pretendem resolver questões científicas, não têm recebido o financiamento que se justificava, dada a relevância de “Bracara Augusta”.
No que diz respeito à conservação dos vestígios identificados o problema é o mesmo. Escassos investimentos. Da chuva de dinheiros europeus, que foram concedidos a Portugal nas últimas décadas, muito pouco foi aplicado na conservação e valorização das ruínas exumadas. O maior investimento terá sido no Museu de D. Diogo de Sousa, embora as obras tenham sofrido quebras inexplicáveis, por má vontade de Lisboa e pouco interesse da autarquia. No entanto, a Unidade de Arqueologia da UM apresentou sucessivos projetos no sentido de valorizar os conjuntos arqueológicos de maior valor.
Quais os achados arqueológicos mais marcantes na cidade de Braga?
Os conjuntos arqueológicos de maior interesse são: a Fonte do Ídolo, santuário único na Hispania, cujos paralelos apenas se encontram na Península Itálica; o Teatro romano e os banhos anexos, conjunto situado no Alto da Cividade e único no Noroeste da Península Ibérica; a Domus das Carvalheiras, uma unidade habitacional e comercial que ilustra o modelo urbanístico da cidade romana; os vestígios da muralha da Antiguidade Tardia; o setor da necrópole da Via XVII e o núcleo da Rua do Raio, ambos descobertos nos trabalhos realizados no antigo quarteirão dos CTT . Há outros conjuntos conservados, parte deles valorizados, outros reenterrados. Já fora do perímetro urbano, o conjunto suévico de Santa Marta de Cortiças.
Numa carta que envia à DRCN, em 2000, queixa-se da relação entre a Câmara e a Arqueologia da UM, a que se referia?
A Câmara Municipal de Braga (CMB) nunca colaborou de forma aberta com a Unidade de Arqueologia da UM, pelo menos enquanto estive ligado ao Projeto. Na verdade, o que pedíamos era que a Câmara consultasse a UAUM antes de enviar os projetos de construção para serem apreciados pelas entidades da tutela, o IPPAR e a sua delegação no Norte.
Pretendíamos recomendar à CMB as condicionantes mais relevantes, que incidiam no projeto construtivo. Por exemplo, é muito diferente condicionar o projeto a um simples acompanhamento ou escavações prévias. Ou seja, éramos chamados a posteriori. Perdia-se tempo e geravam-se equívocos. E a UAUM não tinha a possibilidade de planear com o mínimo de antecedência as intervenções arqueológicas antes das obras.
Como avalia a gestão da anterior Câmara, no domínio do património arqueológico?
A gestão do eng. Mesquita Machado foi muito negativa para o desenvolvimento do projeto de “Bracara Augusta” e de um modo geral para o estudo, conservação e valorização do Património de Braga. A UAUM e eu, em particular, pois fui o responsável direto dos salvamentos, caminhei sempre em terreno armadilhado.
E a Câmara atual alterou as políticas ou perpetuou-as? O investimento de 6 milhões de euros, para a valorização de património, representam uma mudança de políticas?
Julgo que a CMB sob a presidência de Ricardo Rio passou a colaborar com a UAUM, tanto no planeamento das intervenções, como no lançamento de projetos de grande importância, designadamente a valorização da Domus da Carvalheiras, do Teatro Romano, do Parque das Sete Fontes (um aqueduto com origem na época romana), e na recuperação do Convento de São Francisco.
No entanto persistem falhas incompreensíveis, embora avulsas, no planeamento das escavações de emergência. E sobretudo não dá orientações ao Gabinete de Arqueologia da CMB para divulgar online os resultados dos trabalhos arqueológicos em curso. As novas tecnologias e as redes sociais disponíveis permitem, com a maior facilidade, a tal divulgação, que interessa a todos, aos especialistas e aos bracarenses. Não entendo porquê.
Bracara Augusta ainda existe? E se existe, qual a dimensão da amputação executada ao longo dos anos e em nome do “progresso”?
Bracara Augusta ainda existe. Num artigo publicado na revista Mínia apresentei um cálculo por alto, tendo em conta a dimensão da cidade romana e da Antiguidade Tardia, que seria de 60 hectares, sem contabilizar os arredores, que são muito importantes para o estudo da urbe.
Terá sido estudada desde 1976, em cerca de 20 a 30 %. Admito que terá sido destruída de modo irreversível, sem qualquer registo, cerca de 30 %. Pelo que julgo que se conserva ainda por descobrir 40%. Vestígios preservados em vários largos ou praças, sob casas, ruas e logradouros. Por exemplo no Largo das Carvalheiras. Ou no Largo João Peculiar. Sob os alicerces da Catedral, há uma invejável riqueza arqueológico. Ou sob os jardins do Museu de D. Diogo de Sousa. Como se verificou no quarteirão dos antigos CTT, haverá muitas surpresas que aguardam os futuros arqueólogos.
Quem são, na sua opinião, os principais responsáveis pela destruição patrimonial?
Não tenho dúvidas em atribuir ao eng. Mesquita Machado e ao dr. Nuno Alpoim a responsabilidade de grande parte das destruições. Houve também cumplicidade ou complacência do poder central. As autarquias, de acordo com a Constituição Portuguesa, têm a obrigação de zelar pela conservação do Património Arqueológico e Cultural.
Houve erros cometidos pela UAUM, já assumidos por mim no referido artigo publicado na revista Mínia. Mas o Projecto de Bracara Augusta, se tivesse contado com o apoio da autarquia, teria outra dimensão, embora seja reconhecido em Portugal e em Espanha, e mesmo a nível internacional.