Há 30 anos, por volta das 10:00, Esperança Araújo estava a preparar o pequeno-almoço, para depois começar a trabalhar na Casa de Pasto Irmãos Cunha, quando ouviu um estrondo. Instintivamente pousou o galão que tinha na mão sobre o balcão, mas a onda de choque que se seguiu acabou por atirar o copo pelo ar. O restaurante ficava em frente à estação terminal de caminho-de-ferro de Braga, do lado oposto da rua, por isso Esperança e os colegas estiveram entre as primeiras pessoas a assomar à rua e a ver que o estardalhaço tinha sido provocado por um comboio desgovernado.
“Quando chegamos à rua vimos que o comboio tinha atravessado a estrada e foi-se enfaixar nos alicerces do hotel que estava em construção do outro lado da rua”, conta. A construção a que Esperança se refere é hoje o Hotel Estação. Desde os batentes do fim da linha até aquele lugar vão pelo menos 50 metros, a distância que o comboio de mercadorias percorreu fora dos carris antes de se imobilizar. “Foi por pouco que a locomotiva não caiu nas fundações do hotel”, recorda.
Esperança tinha 23 anos e, nos dias que viveu desde aquele momento, nunca mais viu uma coisa assim. “Num instante apareceu ali muita gente. Não se sabia se tinha havido vítimas”. Ficou-lhe na retina a imagem do maquinista em cima da locomotiva, “aos gritos, aflito”. Segundo as investigações às causas do acidente, o descarrilamento ter-se-á devido a uma falha nos travões. Contudo, algumas pessoas dizem que o próprio facto de um comboio de mercadorias estar naquela linha, destinada a passageiros, parece indiciar uma falha.
Um homem morreu
Na curta, mas trágica viagem, em que o comboio carregado de cimento, proveniente de Nine, atravessou uma confluência de ruas muito movimentada aquela hora da manhã, ceifou uma vida. O condutor de um carro que passava e que foi arrastado pela locomotiva CP 1412. “Só se via o braço e mão do senhor que ficou esmagado dentro do carro, ficou preso numa bola de ferros. Usava um casaco de bombazine”, relembra Esperança, com uma tristeza que mesmo os 30 anos passados não apagaram.
Entre as pessoas que se foram juntando no local, à medida que a notícia viajava pela cidade, estavam a jovem Carla Pereira e a mãe. Uma parte da casa onde a avó morava, ao lado do hotel em construção, também foi derrubada pela locomotiva desgovernada. “Não sabíamos se a minha avó estava lá dentro”.
Carla e a mãe moravam na Sé, a cerca de 15 minutos a pé do local, mas naquele dia dez minutos chegaram para se porem à porta de casa da avó, a angústia dava-lhe corda às pernas. Uma vizinha que lavava roupa num tanque para os lados da estação levou-lhes a notícia. “Ide depressa que um comboio entrou pela casa da tua avó”, disse-lhe a mulher.
“Quando lá chegamos, foi uma confusão porque a polícia não nos deixava entrar e nós não sabíamos se a minha avó estava lá dentro”. Na casa, morava a matriarca e três tios de Carla. Felizmente veio a verificar-se que já todos tinham saído de casa à hora do acidente. A avó estava por ali na multidão que, entretanto, tinha engrossado e já incluía jornalistas e a equipa de reportagem da RTP.
Vídeo: RTP
A casa onde morada a avó de Carla sofreu tantos danos na estrutura que teve que ser demolida (o terreno ainda hoje se encontra devoluto). Os moradores foram realojados em apartamentos de habitação social pelo Município. A avó de Carla – conhecida como Rilha da Estação – não quis ir viver para um bairro social, mas também nunca mais teve uma casa onde pudesse dedicar-se à atividade que a tornou conhecida na cidade: a secagem de peles.
Quando, finalmente, a PSP deixou que subissem pelo que restava das escadas para irem a casa da avó, já sabiam que ela e os tios estavam em segurança. “Fomos lá para ir buscar os seus pertences. Ela nunca mais dormiu ali, a casa não tinha condições”. Quem também arriscou a subida pelos destroços dos degraus foram os fotojornalistas e os operadores de câmara. “As imagens que existem de cima foram feitas de casa da minha avó”, conta Carla.
A pior recordação que guarda daquele dia foi-lhe contada pelos bombeiros, seus vizinhos na Sé. “Contaram-me que o engenheiro da Câmara que morreu esmagado ainda mexia a língua no momento em que conseguiram chegar a ele”. Consola-se com a ideia de que poderia ter sido ainda pior, “porque no instante antes tinha passado um autocarro cheio de gente”.