A exposição “Arquivos de Bouça Fria” é inaugurada hoje no Neblina, um espaço entre ateliê e galeria de Daniel Moreira e Rita Castro Neves, no Porto, expondo “o culminar de um processo” de dois anos numa bouça no Gerês.
“Esta exposição é um bocadinho o culminar de um processo, que parte de visitas a uma bouça de apenas um hectare e que se situa na aldeia de Vila Boa, no Parque Natural Peneda-Gerês, a que temos ligações afetivas, familiares”, explicou à Lusa Rita Castro Neves.
Em paralelo com a instalação, patente até 02 de julho no espaço da dupla de artistas e curadores, na Rua D. Manuel II, no Porto, é lançado um livro com o mesmo nome, pela editora Museu da Paisagem.
O trabalho aqui exibido dá continuidade a vários outros momentos expositivos e de performance ao longo de dois anos de trabalho naquele território, assim como o livro, e também ao estilo de trabalho de Moreira e Neves, refletindo sobre como um espaço de ateliê pode também servir para interferir com o desenho expositivo.
“A exposição é um recolher e acrescentar de todos esses materiais que já produzimos. É um misto de trabalho de ateliê, e há coisas colocadas como se fosse no ateliê, mas também de peças, objetos, que já usámos em mostras anteriores”, explicou Rita Castro Neves.
Já Daniel Moreira nota a diferença para as mostras anteriores, seja pela incorporação de “documentos de apresentações e performances, como as folhas de sala, e fotografias das instalações e textos”.
No livro, por seu lado, há textos críticos de Jorge Gaspar, Maria de Fátima Lambert e Susana Ventura, que configuram um “olhar exterior” para esta bouça e este trabalho artístico.
Mostrar “outras formas de vida que não o Porto e Lisboa” é outro dos desígnios da exposição, que combina fotografia, desenho, vídeo e objetos escultóricos, sem “imagens idealizadas e de intuito turístico” nem “romantizar ou produzir imagens-postal”.
Esse retrato, mais ou menos real, da fotografia ao desenho, também abre caminho a figuras “da imaginação” que acabam por povoar o território, no qual os dois se embrenharam.
“Estivemos dois anos a ir regularmente àquele hectare, pequeno, mas será que realmente conhecemos o lugar? Mesmo tão profundamente, será que é profundidade suficiente?”, refletiu Rita Castro Neves.
Como “o lugar é sempre diferente”, dependendo da altura do ano, do dia, em que é visitado ou ocupado, notou Daniel Moreira, a exposição denota um olhar sobre “a relação da calma, do lugar, do não-citadino”.
A “noção de calma, de desacelerar” combina-se com experiências a nível sensorial, do cheiro da giesta a uma outra relação de memória, com visitantes de exposições anteriores a comentarem: “lembra-me mesmo a aldeia dos meus pais”.
A memória, o rural e a geografia nortenha, de serra, tem sido um tema frequente no trabalho da dupla, assim como a reflexão sobre os materiais e a natureza, e aqui há um olhar sobre “como os humanos se relacionam com materiais construtivos, e matérias naturais”, da utilidade da giesta ao granito, tão comum na região trabalhada, em que “é usado para tudo”.
“Na relação humano-animal, vemos uma grande interação. No Gerês há uma zona transfronteiriça, mas também de transumância, em que os humanos viviam numa situação de nomadismo sazonal, iam para outros terrenos porque isso era bom para alimentar os animais. Os próprios cortelhos serviam de abrigo ao pastor em períodos de transumância”, comentou Rita Castro Neves.
Sem uma “apologia de que se devia viver dessa forma”, este encontro com “formas alternativas de relação com o meio ambiente” combina com uma perceção do rural, do interior do país, que é “menos consumista, menos produtora de lixo”, e sem uma ‘venda’ turística do local, com as suas formas de produção de capital associado.
Quanto ao livro, sabiam que o objetivo não seria “que fosse um catálogo da exposição”, com duas “vidas e modelos diferentes”. Assim, o objeto mais físico, permanente, é “quase uma caminhada”.
Recolhendo fotografias, desenhos e gravuras, assume quase uma viagem por aquela bouça, trabalhando a sucessão das imagens e uma reflexão sobre “uma narrativa, que não é linear, e que atravessa primavera, verão, outono, inverno, o dia, a noite”, emulando em parte a ocupação que faziam do lugar.
Se “a experiência de folhear o livro é diferente de ver a exposição”, como afirmou Daniel Moreira, e que está incluído na própria instalação, há aqui “um pensamento artístico” e é “uma coisa que fica”, completou Rita Castro Neves.
“’Bouça Fria’ (Vila Boa), paisagem caminhada pela memória, é matéria de imagens – diretas, intermediadas, ansiando presenças. Porque se escolhem as paisagens?”, escreve Maria de Fátima Lambert em “Mapa Mental da Bouça Fria: Estética e Poética”, um dos três ensaios do livro.
A exposição “Arquivos de Bouça Fria” pode ser visitada de quinta-feira a sábado, por marcação, no espaço Neblina, tendo recebido apoio à criação da Fundação Calouste Gulbenkian.
O livro, por seu lado, tem o apoio à edição da Direção Regional de Cultura do Norte e da Câmara Municipal de Arcos de Valdevez.
Também hoje, o projeto inaugura ainda “Les Plantes Voyageuses”, uma obra de Rita Carreiro colocada na Caixa de Correio, isto é, no espaço ao lado da porta de entrada do estúdio, uma pequena vitrina por cima da caixa dedicada aos envios postais.
Daniel Moreira e Rita Castro Neves têm trabalhado em colaboração desde 2015, entre o Porto e a Beira Alta. Moreira é formado em arquitetura e trabalha entre este campo e as artes plásticas, enquanto Castro Neves estudou fotografias e belas artes, trabalhando entre a docência e a curadoria.
Antes do Neblina, que arrancou em 2021, Rita Castro Neves e Daniel Moreira recuperaram uma antiga escola primária em Macieira, na Serra de São Macário, no distrito de Viseu, e abriram o espaço a residências artísticas após a “paixão imediata pelo lugar e pela paisagem”.
O projeto pode ser visitado em www.escolademacieira.com.