No dia 09 de outubro de 1946, o casal Maria Antonieta e Herculano Ferreira abriam uma ‘benda’ na freguesia de Pedra Furada, em Barcelos. Setenta e cinco anos passados, são os três filhos – António Herculano, Angelina e Madalena – que dão continuidade ao legado familiar. E a ‘benda da Maria’, como era conhecida, é hoje um dos mais conceituados restaurantes de Barcelos. O Pedra Furada mantém a aposta na comida típica minhota e o galo recheado assado no forno é o ex-líbris da casa, que atrai clientes de todo o país e mesmo de fora. Localizado em pleno Caminho de Santiago, é ponto de paragem obrigatória para os peregrinos que ali encontram uma casa que sempre os soube acolher da melhor forma.
Um ano depois da II Guerra Mundial, o casal Maria Antonieta e Herculano tomava conta da ‘benda’ – “assim mesmo à boa maneira minhota”, sublinha o filho, António Herculano – que já vinha de um tio-avô.
“Era uma ‘benda’, mas como a minha mãe cozinhava muito bem já fazia uns petiscos. Normalmente para caçadores, para gente que passava em trabalho, gente mais abastada, porque estávamos no tempo da fome e os clientes locais restringiam-se, praticamente, ao álcool. Isto era muito pobre”, assinala o mais novo dos três irmãos, recordando “as roupas esgaçadas pelos trabalhos duros quer nos campos, quer nas obras”.
Ali, para aqueles trabalhadores, numa época em que a pobreza grassava, a ida à taberna “era o grande momento do dia deles”. “As casas não tinham condições, a fome era muita, então tinham aquele momento do dia que era a ida à taberna, que era um mundo de homens. Era raríssima a mulher que se sentava naqueles bancos”, afirma António Herculano, cuja pai faleceu quando tinha 18 meses, de pneumonia.
Muito jovem, Maria Antonieta teve, então, que passar a tomar conta da ‘benda’ e criar os três filhos sozinha.
“Aí a vida tornou-se muito mais dura para a minha mãe: criar três filhos pequenos numa taberna onde havia muito consumo de álcool. Foi efetivamente uma vida muito dura, mas a minha mãe foi uma mulher de muita coragem, muita sabedoria. Sabia conviver com aquele mundo mágico do álcool, da pobreza, por vezes das palavras e gestos mais rudes. Ela conseguiu sobreviver a isso tudo e levando sempre o negócio para a frente”, considera António Herculano, lembrando sempre a “generosidade” da mãe que sempre “dava uma malga de sopa” a quem mais precisava.
Maria Antonieta viria a falecer em 2018 com 92 anos. E foi sempre o “grande farol” dos filhos, que mantêm o seu legado. “Para além de ser uma grande lutadora, foi uma ótima gestora do negócio”, aponta António Herculano, acrescentando, com admiração e saudade: “A alma dela ainda anda por aqui”.
De ‘benda’ a restaurante, o Pedra Furada, que adotou o nome da freguesia, foi evoluindo ao longo dos tempos, mas mantém os petiscos que Maria Antonieta tão bem fazia, como as postas de bacalhau frito, as pataniscas ou os bolinhos de bacalhau.
Ponto de paragem obrigatória para peregrinos
Do exíguo espaço inicial, que além da taberna e mercearia também servia de habitação, no final da década de 60, a família compra um novo espaço mesmo à frente da antiga venda, com mercearia de um lado, taberna do outro e um “espaço mais condigno” de habitação.
Já em 1974 – “ano da Revolução”, assinala António Herculano – passaram para o espaço onde agora ainda funciona o café e uma sala de refeições.
“O negócio ia sempre evoluindo, a qualidade e o carinho com que a minha mãe e nós, educados por ela, púnhamos nas coisas fez com que a clientela começasse a ser cada vez mais vasta. Já não vinha só gente de Barcelos, mas de Famalicão, Póvoa, Vila do Conde, Braga e do Porto”, recorda.
Com tanta procura, o espaço começa a tornar-se exíguo e, em 1981, na parte de trás, é inaugurado a sala de refeições maior que se mantém até ao dia de hoje.
Localizado em pleno Caminho Central de Santiago, o Pedra Furada é um ponto de paragem obrigatório os peregrinos que ali podem confortar os estômagos ou refrescar as gargantas.
António Herculano, um dos mais dedicados divulgadores e defensores do Caminho Central de Santiago, recorda que foi na viragem do século que os peregrinos começaram “a fazer parte do panorama visual” da região.
“Começa a aparecer uma dúzia por ano, só que depois veio sempre em crescendo. Hoje tenho aqui um espólio nas paredes e nos livros de peregrinos de 141 nacionalidades diferentes. Diz muito do que é o atualmente o caminho”, nota.
A relação que o Pedra Furada estabeleceu com os peregrinos também se deve à “alma” da casa, Maria Antonieta: “Como a minha mãe nos educou a tratar bem toda a gente, nós tratamos bem toda a gente, seja pobre, seja rico e os peregrinos começaram a ser tratados tal e qual como tratávamos todos os clientes”.
Sempre prontos a receber os caminheiros de Santiago “com um sorriso na boca” e disponibilizando um menu peregrino, o Pedra Furada cedo percebeu a importância do Caminho para a região. “Temos aqui o mapa da cidade e literatura a falar da lenda do Galo de Barcelos. Assim, o peregrino sai já daqui com um mapa da cidade de Barcelos para se orientar”, explica.
“O Caminho de Santiago começou a ser valorizado por gente de todo o mundo graças às pessoas anónimas que estão ao longo do Caminho e que sabem receber, não é pelos políticos”, reconhecendo, no entanto, que os executivos da Câmara que se sucederam “começaram a olhar de uma outra forma para o Caminho de Santiago”.
E os peregrinos muitas vezes regressam “para fazer o caminho novamente ou com a família, para visitar os sítios que as marcaram, porque efetivamente somos um povo hospitaleiro, temos um país maravilhoso, com um clima muito bom”.
Galo assado é o ex-líbris
A lenda do Galo de Barcelos está intrinsecamente ligada ao Caminho de Santiago. E levando a lenda para o prato, o galo recheado assado no forno é o ex-líbris do Pedra Furada. Iguaria que tem sido promovida pelo Município como forma de capitalizar a marca do Galo de Barcelos transpondo-a para a gastronomia.
“Deve-se também e presto a minha homenagem ao dr. Nuno Rodrigues que trabalha há cerca de 20 anos no Turismo da Câmara de Barcelos. Somos amigos há muitos anos. E falávamos sobre termos o galo na lenda, na cerâmica, só nos faltava tê-lo na gastronomia”, realça António Herculano.
O Pedra Furada ganhou vários concursos do Galo Assado promovidos pelo município, entre outros prémios.
“O galo assado já não é uma referência só nacional, já é uma referência internacional”, assinala, exemplificando com um grupo de uma universidade da Austrália que, pouco antes da pandemia, ali foi propositadamente para se deliciar com aquela iguaria.
Mas, além do galo recheado assado no forno, há outros pratos emblemáticos que fazem as delícias dos clientes, como o cozido à portuguesa, cabrito assado, rojões à moda do Minho ou papas de sarrabulho à moda de Barcelos.
O segredo? “Um dos grandes trunfos da nossa cozinha sempre foi o cozinhar a lenha. É uma grande mais-valia, porque a comida tem outro sabor”, explica António Herculano. Além disso, a casa continua a utilizar os métodos antigos de cozinha, como o estágio de carnes na salgadeira ou os rojões conservados no pingue, que dão o verdadeiro sabor tradicional aos pratos confecionados.
“A cozinha tradicional minhota foi o que sempre nos moveu”, realça.
Pandemia
Questionado por O MINHO se a pandemia foi o momento mais difícil da história do Pedra Furada, António Herculano afirma que não: “Os momentos mais difíceis foram precisamente os que não vivi, mas que viveu a minha mãe e que eu sei através da História. Foram os anos 40, 50 e 60. Não podemos esquecer a fome, a miséria, o analfabetismo, o atraso que havia. Sabemos que a pandemia foi um acontecimento que trouxe muitos dissabores, mas não podemos esquecer os anos 40, 50 e 60, em que as pessoas não tinham nada para comer ou muito pouco”.
“Com a pandemia, já estamos noutra era. Tivemos que fechar, como toda a gente, mas depois também temos que ver o que há de positivo numa situação que é negativa. E a coisa positiva foi que nos permitiu estarmos mais em família, conversarmos, para reorganizarmos as coisas – desde a garrafeira, ao armazém, obras de manutenção”, conta.
“Portanto, temos duas coisas totalmente opostas. Por um lado, temos custos, a porta está fechada, não temos clientes, mas por outro lado tivemos essa parte boa, a família finalmente ter tempo para estar junta”.
“E não podemos esquecer de uma coisa: para quem estava legal, para quem tinha os seus deveres em dia, o Estado também colaborou. É evidente que nunca é aquilo que nós desejaríamos, mas ajudou”, acrescenta António Herculano.
E no final de contas o mais importante é mesmo a família. Neste 75.º aniversário, assinalado no sábado com um almoço para jornalistas que ao longo dos anos desenvolveram trabalhos sobre a casa, António Herculano termina a entrevista O MINHO invocando a mãe e recordando o seu “sorriso e otimismo mesmo nas situações mais difíceis”.
“Se a minha mãe me está a ouvir, quero agradecer-lhe porque foi uma grande mulher, lutou muito, tentou dar-nos aquilo que não lhe deram a ela e nós cá estamos, os filhos, enquanto pudermos, para dar continuidade àquilo que ela começou. Ficar viúva muito jovem, com três filhos e com uma ‘benda’, só uma pessoa extraordinária conseguia que o barco não naufragasse logo que entrasse no mar. Não naufragou e nós cá estamos para dar continuidade”, conclui.