Artigo de Vânia Mesquita Machado
Pediatra e escritora. Autora dos livros “Microcosmos Humanos” e “Humana Seja a Nossa Dor”. Mãe de 3. De Braga.
Depois de ler a notícia que denunciou alegadas irregularidades na gestão da Associação Nacional de Deficiências Mentais e Raras, pensei não existirem quaisquer comentários úteis perante o comportamento tão obviamente ultrajante e pouco escrupuloso da sua Presidente (alegadamente).
A indignação guia a inspiração.
Quem cala consente.
E o raro sorriso de uma criança com uma doença rara vale ouro.
Por isso mesmo, seja ou não alegadamente, importa falar, denunciar, esmiuçar.
Porque a polémica está em cima da mesa, e poderá, não alegada mas certamente prejudicar inocentes.
Já prejudicou, importante é que cause o menor dano possível.
Qualquer forma de corrupção me inquieta os neurónios – ainda acredito na Humanidade.
Corrupçãoque envolve crianças, e pior ainda crianças gravemente doentes provoca um curto-circuito nas minhas sinapses, os neurotransmissores eletrizados com impulsos de revolta.
Mesmo assim continuo a acreditar na Humanidade.
Conheço pessoas boas, muitas. Que fazem surgir o raro sorriso de uma criança com uma doença rara. Com corações de ouro.
E não pode pagar o justo pelo pecador.
Não é eticamente correto julgar o todo pela parte.
Quem usufruiu do que não era seu por direito, se realmente for provado, que responda pelos seus atos.
Todos os outros colaboradores da Raríssimas são pessoas a respeitar.
A Associação não deveria a meu ver extinguir-se nem ser descrebilizada, muito pelo contrário.
Se para alguma coisa serviu esta situação, uma vez exposta, foi para agitar a consciência comum a todos nós, e que por vezes sofre de um estado de pseudo hibernação, entretida no microcosmos onde cada um gere a sua vida, o mais confortavelmente possível.
É esse o lado positivo da revelação na opinião pública dests péssima forma de servir os outros, os que infelizmente e sem culpa nenhuma viram as suas vidas destroçadas pelo peso insuportável de uma doença má nos seus filhos.
E se os factos se confirmarem, em nada a presumível culpada tem como atenuante o facto de ter perdido um filho portador de uma desta doenças, como já li em zapping de rede social, muito pelo contrário, os gestos repetidos de boa samaritana são de uma hipocrisia gritante, e a sua agradável fisionomia não é fruto de um sorriso tranquilo nos lábios de quem faz os outros felizes, mas sim o resultado de idas ao cabeleireiro, a spas, e de viagens de lazer à custa de dinheiros públicos: verdadeira loba em pele de cordeira.
Que a ovelha negra seja exemplarmente punida se culpada, penso estarmos todos de acordo neste ponto.
Outros geram opiniões divergentes. Como as cerejas cujos cachos surgem presos uns aos outros, as ideias saltam das mentes intermitentemente anestesiadas, e mesmo que com sentidos contrários levam à salutar discussão de temas que se não fossem os escândalos sensacionalistas não seriam tema de jornais nem alvo de audiência televisiva.
Quando devidamente desencobertos (felizmente o jornalismo de serviço público ainda está bem vivo), o debate viral que suscitam deve ser uma já nela de oportunidade para melhorarmos como sociedade.
Porque o raro sorriso de uma criança com uma doença rara vale ouro.
De evitar a fácil conotação política no mau sentido do termo, a de linchar em praça pública todas as instituições de solidariedade social porque «são geridas por privados», a de associar a cor do partido à eventual criminosa.
Os que usufruiriam dos fundos da Associação já foram penalizados q.b., inocentes crianças e suas famílias, que todos os dias acordam sem saberem o que são manhãs, tardes e noites de verdadeira despreocupação pelo bom estado de saúde, tido como garantia por muitos de nós, e para o qual não existe mérito nem estatuto social ou económico: é uma questão de sorte ou de azar, e muda numa esquina instantânea do tempo.
E por isso mesmo, e para evitar que esta e tantas outras Associações sejam marginalizadas, encaradas como «forma de reunir um grupinho de tias à hora do chá para brincarem à caridade», destruindo o espírito de solidariedade generosa que costuma despertar na quadra natalícia, esta triste provável realidade deve servir para acordarmos de vez em quando para as vidas dos outros, os que sofrem de doenças graves, raras ou não, os que encarariam a vida como um beco sem saída, se não fosse a boa vontade de uns poucos seres humanos cuja bondade e espírito altruísta não têm preço, mesmo que a sua fisionomia não seja tão agradável por não gastarem o que não é seu a retocarem o aspeto.
E em vez de decidirmos sumária e rapidamente, como bons treinadores de bancada que todos pensamos ser, que essas Instituições deveriam ser extintas, que o que contribuímos para os impostos deveria ser gerido pelo Estado, enquanto a utopia não se tornar realidade, poderíamos dar um pouco do nosso tempo como voluntários por essas nobre causas, ou uma ínfima parte do nosso orçamento para que as vidas difíceis dessas crianças sejam mais felizes. Porque independentemente da forma como vão receber ajuda, elas merecem…
…E o raro sorriso de uma criança com doença rara vale ouro.