Por entre as ruas de Barcelos respira-se a alma gilista com o regresso à principal liga de futebol 13 anos depois daquilo que os adeptos classificam como uma das maiores injustiças do futebol português. Por entre esses adeptos, há um que se destaca. Manuel Augusto Martins Fernandes, de 79 anos, é o atual sócio n.º 1 do clube, e O MINHO entrevistou o histórico adepto, em sua casa, na freguesia de Arcozelo.
Sócio há 69 anos depois de um tio lhe ter pago as primeiras cotas [26 tostões por ano], confessa que chegou a pensar não voltar a ver o momento de regresso do Gil, depois de uma pancreatite o ter atirado para uma cama de hospital. Mas hoje, parcialmente recuperado, deixa um aviso ao próximo adversário: “O Porto que se ponha a pau, porque o Gil pode muito bem marcar um ou dois golos e depois defender o resultado”. Manuel é assim, um guerreiro que nunca desiste. E não vai faltar ao jogo do próximo sábado, frente ao FC Porto, que marca o regresso do “Galo” à I Liga.
Durante a entrevista, foram várias as vezes que Manuel Augusto se emocionou, levando a que o jornalista parasse o gravador para conversar em ‘off’. Recorda a história de vida, sempre entrelaçada com o clube que lhe ocupa grande parte do coração. Começou por trabalhar, ainda na adolescência, numa fábrica de farinhas, abrindo depois o próprio negócio, junto ao largo da Estação de Comboios de Barcelos. “Vendia perto de um milhão de quilos de sal gema por mês para a indústria têxtil”, atira. E, por entre as vendas, Manuel Augusto caminhou sempre ao lado do Gil Vicente.
“Quando me fiz sócio, o Gil jogava nas regionais e ainda cheguei a conhecer o Adelino Novo”, diz, referindo-se ao homem que deu o nome ao antigo estádio do clube. No clube, percorreu “os cargos todos, menos presidente”. “Estive na direção do Trigueiros, Bartolomeu Paiva e do Joaquim Silva. Fui vice-presidente, secretário, tesoureiro e depois passei para a Assembleia Geral”, atira. Mais tarde, entrou para o conselho técnico da Associação de Futebol de Braga onde era o responsável por aprovar campos de futebol.
Desses tempos, guarda a memória de um grupo de associados que fazia de tudo para que o clube escalasse para momentos de glória. Recorda a subida à II Liga, nos anos 70, como um dos períodos mais festivos que viveu de galo ao peito. Como pior momento, Manuel Augusto não tem dúvidas. “Foi a descida na secretaria” em 2006, na sequência do ‘caso Matheus’.
Com as pupilas lacrimejantes e um embargo emocionado na voz, Manuel recorda que, no final do último jogo em casa da temporada 2005/2006, “festejou-se a permanência com o estádio cheio”. Mas, no final da época, “por linhas travessas”, o Belenenses “conseguiu o que queria” e o Gil Vicente desceu na secretaria. Voltou à principal liga em 2011, e no ano seguinte até disputou uma final da Taça da Liga, mas voltou a descer de divisão.
Mas Manuel, à semelhança do antigo presidente do clube António Fiúza, de quem é amigo, nunca baixou os braços. “Continuei a apoiar o clube e a pensar que nos haviam de dar razão”, diz, deixando elogios ao antigo presidente.
“O Fiúza… Deveria haver mais dirigentes como ele. Foi persistente, dizendo que tinha razão e que o tempo lhe iria dar razão, e assim foi. É alguém que foi júnior do Gil, diretor das camadas jovens e resolveu ir para presidente porque amava o clube, e eu apoiava-o muito”, confessa.
Sobre uma festa organizada por Fiúza em julho deste ano para assinalar o regresso à I Liga, Manuel Augusto recorda que foi um momento inesquecível. “Parecia que o homenageado era eu. Tinha muita gente a ver, sabiam que eu era o sócio n.º 1, e pessoas que não via há mais de 30 anos vinham-me abraçar. Comovi-me muito”, refere.
“Ele [António Fiúza] fez questão que eu fosse à festa porque sabia que eu estive sempre do lado dele. Como tinha razão prometeu que quando houvesse o regresso ia matar porcos para dar de comer aos gilistas, e as pessoas passavam por ele e diziam: ‘então Fiúza, os porcos?'”. Resultado? “Matou 13 porcos, porque foi o número de anos que o Gil esteve à espera da decisão”, explica. “Só ele é que consegue fazer uma festa como aquela, até porque custou-lhe 20 mil euros”, acrescenta Manuel Augusto.
Pancreatite quase o afastou dos jogos. Mas resistiu, como um “bom gilista”
Manuel Augusto viveu, na passada década, um problema de saúde complicado. Sofreu uma pancreatite severa que quase o “levou para o outro lado”. “Quando fui internado tinha o coração a bater a 180. O médico chamou o meu filho e disse que eu não ia sobreviver. Chegou a ir lá o capelão do Hospital para me benzer. Mas eu resisti, a sofrer, mas resisti”. (emociona-se). “Também foi a alma gilista que me ajudou a ficar neste mundo, porque sabemos resistir”, diz, novamente emocionado.
Durante os anos em que o Gil esteve afastado dos principais palcos, não deixou de colaborar: “Fiz parte de uma comissão com outros históricos para auxiliar na logística de eventos à direção do Gil, e procurei sempre ajudar. Tinha um lugar mesmo em frente no meio campo, e quando o árbitro roubava eu descia e fazia pressão. Também era uma ajuda (risos)”.
Atualmente, fruto do problema de saúde já mencionado, que lhe tolhe bastante os movimentos dos membros inferiores, Manuel Augusto move-se com dificuldade, mas, questionado sobre se irá ou não aos jogos, é peremptório. “Claro que vou. Paguei o ano todo e tenho a cadeira para mim e as cotas todas pagas. Ver o Porto no sábado? Mas é óbvio que sim. Eu e os netos. Tenho seis netos e são todos sócios. Um deles até é treinador adjunto nos juvenis do Gil”, conta um orgulhoso sócio n.º 1.
Antes de nos mostrar a habitação, onde guarda várias recordações, não só do Gil Vicente mas também do Benfica, outro clube pelo qual tem “muito amor”, Manuel Augusto emociona-se novamente, deixando um ‘recado’ ao povo de Barcelos.
“Eu queria que os barcelenses e os simpatizantes do Gil continuassem a apoiar o clube, que aparecessem no futebol, até porque os preços estão acessíveis para que todos possam ir”, apela. Sobre a equipa, diz estar “a ser formado com muitos atletas brasileiros que são mais lentos”, antecipando “dificuldades”.
Todavia, e seguindo a resistência e positivismo que lhe deu alegrias na vida, deixa o ‘recado’ final: “No jogo na Vilas das Aves ganhámos 3-2, portanto o Porto que se ponha a pau porque o Gil pode muito bem marcar um ou dois e defender o resultado. E dar-me uma grande alegria”.