Artigo de Vânia Mesquita Machado
Pediatra e escritora. Autora do livro Microcosmos Humano. Mãe de 3. De Braga.
Aproveito a companhia dos meus filhos que adormecidos sonham despreocupados.
Não aproveito nada, na verdade, sinto literalmente o tempo fugidio e faço a reflexão praticamente diária de mea culpa por não me dar mais aos meus filhos.
A vida voa. O jantar é um corropio em contrarrelógio, dois rapazes e uma adolescente em conversas entrecruzadas sobre tudo e nada, e eu num esforço sobrehumano de equilibrar refeições na mesa, ouvidos atentos, reforços positivos se merecidos, ralhetes q.b. porque faz parte do papel de mãe.
A minha mente a distanciar-se para as tarefas ainda por cumprir, o dia seguinte de escola exige levantar quando o galo aquece a voz, e quando dou por mim perdi metade dos assuntos espalhados sobre a mesa, enquanto arrumo a cozinha, as mãos aceleradas e a voz de comando para irem dormir.
Os meus meninos saudáveis.
A benção de Deus que ignoro e que sendo um dado adquirido não perco tempo a agradecer.
O dia seguinte à ida ao IPO assemelha-se a um dia de nevoeiro.
As imagens que a retina fixa desse hospital são carregadas de uma emotividade tão intensa que nada do que escreva as descreve com nitidez. Nos corredores formigam doentes, acompanhantes, voluntários, médicos, enfermeiros, auxiliares, a azáfama é constante, os corredores cujas paredes estão decoradas com fotografias e frases de esperança fervilham de rostos ansiosos, apressados, desanimados, macilentos e cansados da doença, mas predomina uma corrente invisível de otimismo e valentia.
Por mais que me esforce não consigo que visualizem o rosto exausto mas resiliente da mãe que empurrava a menina de máscara na cadeira de rodas que saía do elevador quando nos dirigimos para fazer as análises antes da sessão de quimioterapia.
Não consigo que visualizem a expressão acolhedora e afável das voluntárias.
É-me totalmente impossível que pela escrita entendam como é a sala de espera do hospital de dia, onde os doentes oncológicos aguardam pacientemente a sua vez como se esperassem na paragem do autocarro ou numa fila de supermercado, de senha na mão e prestando atenção ao monitor que indica a sua vez, para mais uma vez enfrentarem uma batalha contra as malditas células tumorais,minutos depois, sentados num cadeirão com o dorso da mão esburacado e onde são postos a circular os cocktails de medicamentos corrosivos, que corroem células boas e más e corroem também vidas, como me explicava horas mais tarde a enfermeira que nesse dia se encarregava de tratar o meu querido doente que entretanto adormecera, e que do alto da sua grisalha experiência me relatava a sorte da maioria dos homens que eram apaparicados pelas esposas, e o azar de grande parte das senhoras, principalmente as mastectomizadas que eram abandonadas a braços com a doença e com os filhos por criar… Já me tinha apercebido de que muitas mulheres iam sozinhas enfrentar o cadeirão da quimioterapia.
Mas mais do que a revolta pela desumanidade de alguns, gostava de passar a imagem de serenidade e de esperança da maioria dos doentes oncológicos, e como referi repetidamente essa aura de vibrações positivas que se sente no IPO é absolutamente indescritível por palavras, e assumo a minha total incapacidade para a partilhar convosco…
Os meus filhos embalados no mar alto do sono, e eu a ter a certeza que desaproveito a vida, entretida entre a rabugice de pequenos nadas das rotinas, alheada do verdadeiro sentido da vida, como provavelmente muitos dos que leram o que escrevi.
Mas esses dias de IPO, e essa neblina do dia seguinte, vão, espero, levar-me a ver os dias com outras cores. A aproveitar. Como o meu querido doente que passou a tarde entretido entre flores e árvores para semear e plantar agora o seu jardim de esperança, no dia seguinte à batalha do cadeirão da quimioterapia…
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