Um lapso de interpretação do Ministério Público e da juíza de instrução criminal, reconhecido pelo próprio magistrado do MP, que assim deu o dito por não dito sobre o prazo da prescrição de crime de abuso de poder deixou um arguido em suspense com o seu futuro profissional, após ver essa acusação arquivada pela Comarca de Braga, mas a questão pode mudar o Código Penal.
A alegada má interpretação da lei pelo procurador da República, passou pelo crivo da própria juíza de instrução criminal de Braga, pelo que será agora o Tribunal da Relação de Guimarães a reparar ou não os lapsos assumidos por ambos os magistrados.
Na base de todo o imbróglio inexplicavelmente criado pela Comarca de Braga, está um processo por alegada violação de regras urbanísticas, com licenciamento de construção na área protegida da margem esquerda do rio Cávado na Albufeira da Caniçada.
Segundo se constata por todas as peças processuais às quais O MINHO teve acesso, um dos crimes imputados na acusação do Ministério Público ao arquiteto camarário suspeito deste caso, de abuso de poder, tem um prazo de prescrição que é excecional.
Nas alterações ao Código Penal, em 2015, o crime de abuso de poder, apesar de ter uma moldura penal máxima de três anos e que em regra é suspensa ou até aplicada logo uma multa alternativa, implica uma prescrição de 15 anos, como num homicídio.
Assistente diz que não pode valer tudo
Por se tratar de questão ambiental relacionada com o Plano de Ordenamento da Albufeira da Caniçada, inserido no Parque Nacional da Peneda Gerês, qualquer cidadão poderá constituir-se assistente, isto é, participar ativamente em todo o processo.
Tratando-se de crimes com consequências ambientais, José Miguel Fischer, que já se tinha constituído assistente no processo, entende, segundo as suas palavras, “não valer tudo e o poder punitivo estatal não pode defraudar as expetativas dos cidadãos”.
E diz mais, especialmente, não deverão lesar os destinatários das próprias normas jurídicas penais, como é o caso do arquiteto, pois já tinha uma decisão definitiva da juíza de instrução criminal (“a juíza do cidadão”) e é agora confrontado com um revés.
Segundo José Miguel Fischer, que se tem dedicado às questões dos deveres jurídicos, versus direitos de cidadania, uma coisa bem diferente teria sido os dois magistrados desaplicarem uma norma que considerassem inconstitucional, mas não foi o caso.
No seu entendimento, os magistrados, o procurador em alegações aquando da fase de instrução e a juíza de instrução criminal no seu despacho, não pronunciou o arguido por abuso de poder, seguindo os prazos gerais e não os especiais para a prescrição.
Para José Miguel Fischer, assistente neste processo e alicerçado em diversos pareceres jurídicos, todos em sentido convergente, “o Ministério Público está expressamente proibido de recorrer de uma decisão com a qual expressou antes a sua concordância”.
“Este é um caso insólito e que certamente vai provocar uma revolução jurídica nos tribunais superiores, consistindo em saber o seguinte: quando o Ministério Público, em alegações orais, já proferidas, decide num determinado sentido e a decisão judicial é proferida no mesmo sentido dessa concordância expressa do MP e posteriormente o Ministério Público e mais ainda o mesmo magistrado do MP, muda de ideias e recorre em sentido contrário, se tem legitimidade para recorrer”, diz José Miguel Fischer.
O assistente no processo vai ainda mais longe, admitindo “que o Ministério Público até pudesse ter razão, à primeira vista, no recurso interposto, mas também não a teria quando ao analisar o regime de contagem de prazos de prescrição em Portugal, via que se aferem pelas penas aplicáveis a cada crime, por isso este recurso falece desde logo, não faz sentido, não há legitimidade”.
José Miguel Fischer fez rasgados elogios à pessoa do procurador, Ramiro Santos, apelidando-o de “muito competente, pessoa séria, honesta, vertical, muito estudiosa e ter total lisura e transparência”, destacando “não ser a sua pessoa que está em causa”.
No seu recurso, o procurador da República, Ramiro Manuel Patrício dos Santos, invoca logo “mea culpa”, afirmando que com a sua declaração anterior de prescrição “induziu em erro” a própria magistrada do Juízo de Instrução Criminal N1 da Comarca de Braga, Carla Alexandra Moreira Oliveira de Azevedo Maia e Gonzaga de Mascarenhas, pois esta concordou na prescrição.
Não obstante todos esses elogios vertidos na peça processual, o escritório de advogados Soares, Gonçalves & Associados, que representa José Miguel Fischer, invoca que “a questão da ilegitimidade do MP em recorrer se sobrepõe a tudo mais e não há lugar a qualquer tipo de exceção, quando disse uma coisa no processo não se poderá depois vir então e dar o dito por não dito”.
“A mudança de posição da parte do MP provoca um descrédito no sistema de justiça, viola o princípio da proteção da confiança e da credibilidade na Justiça”, citando-se várias vezes um acórdão unificador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e ainda um acórdão do Tribunal Constitucional, ambos no sentido do MP estar proibido de recorrer de decisões com as quais concordava em alegações finais”, como respondem as advogadas ao recurso do MP para o Tribunal da Relação de Guimarães.
Mudar as regras a meio do jogo
As advogadas Ana Eduarda Gonçalves e Bárbara Silva Soares, ambas de Braga, destacam, entre outros fundamentos nucleares, que qualquer arguido, logo qualquer cidadão, tem direito à segurança jurídica, isto é, não mudarem as regras ao meio do jogo.
Mas ambas as causídicas pretendem com este recurso não só reparar o que entendem ser uma tremenda injustiça contra o seu cliente, mas irem mais longe, para conseguir seja desaplicada do ordenamento jurídico penal uma norma “desproporcionada”.
Na contestação ao recurso, as duas causídicas bracarenses tecem duras críticas ao legislador, quando criou um regime especial de prescrição para um crime de abuso de poder, com a pena aplicável até três anos ou pena de multa, pois esse regime especial coloca lado a lado esse crime como se fosse um homicídio qualificado para efeitos de contagem dos seus prazos de prescrição”.
O que, na ótica das duas advogadas, Ana Eduarda Gonçalves e Bárbara Silva Soares, “viola os princípios constitucionais da proporcionalidade, da razoabilidade e da proibição do excesso”, cabendo aos juízes-desembargadores da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães decidir se o Ministério Público poderá recorrer”, contra aquilo que o próprio MP pugnava.
“Caso a Relação de Guimarães valide a admissibilidade do recurso do MP, o assistente já avançou nesta peça processual que o caso seguirá para o Supremo e ainda para o Constitucional”, uma vez que “queríamos ficar no ordenamento jurídico interno e evitar uma nova mais que certa desonrosa condenação do Estado Português pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem”.
No seu recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, as duas advogadas bracarenses, da sociedade Soares, Gonçalves & Associados, começam por alegar que quando o arquiteto foi constituído arguido, já tinha operado a prescrição de cinco anos.
Mas a questão não parece linear, pois as advogadas do assistente, José Miguel Fischer, acerca do arquiteto arguido, entendem que o alegado crime de abuso de poder já estava prescrito, pelo que o arquiteto de tal imputação deve ser liminarmente ilibado.
Dar o dito por não dito, diz assistente no processo
Em declarações a O MINHO, José Miguel Fischer diz “ser questão jurídica interessante, mas ao mesmo tempo muito perigosa, porque num Estado de Direito não podemos aceitar que o Ministério Público, um órgão constitucional, possa criar um caos processual, em que numa fase disse ‘sim está prescrito’ e após uma semana de ter sido declarada por uma juíza essa prescrição, interponha um recurso a dizer ‘não está’, portanto, este volte face não poderá aceitar-se, muito menos num processo criminal”.
“O Ministério Público tem que ser visto como alguém de confiança, se considerou que estava prescrito, não pode depois dizer o contrário, é apenas isto que se defende”, acrescenta José Miguel Fischer, sobre esta questão que o opõe ao Ministério Público.
O caso do presidente da Câmara de Vieira do Minho
O mesmo magistrado do Ministério Público tinha entendido, nas suas alegações finais, que o presidente da Câmara Municipal de Vieira do Minho, António Cardoso, também devia ter sido acusado, mas, nem assim, mandou reformular a acusação pública.
Ramiro Santos, o procurador-coordenador do Ministério Público, considerou então que tendo sido aquele autarca de Vieira do Minho a despachar o licenciamento da obra alegadamente contra as regras urbanísticas, também teria que ser alvo de acusação.
Segundo o raciocínio do magistrado do Ministério Público, se António Cardoso, enquanto presidente da Câmara Municipal de Vieira do Minho, não tivesse dado o despacho final, a obra na zona protegida, agora em causa, nunca teria sido sequer erigida.
Neste caso, o coordenador do MP, constatando publicamente que o seu colega subscritor da acusação pública terá errado, ao não acusar António Cardoso, não tirou consequências jurídicas do lapso, isto é não determinou uma reformulação da acusação.
O autarca, António Cardoso, ficou definitivamente ilibado neste caso, contra a perspetiva do mesmo magistrado do Ministério Público, que nesta situação, apesar de relacionada com o mesmo processo, não recorreu ao Tribunal da Relação de Guimarães.