A Festa das Colheitas, em São Torcato, Guimarães, um dos momentos altos da programação do Grupo Folclórico local, voltou este ano a realizar-se, depois de dois anos de interrupção, devido à pandemia. Na sexta-feira, o dia foi dedicado ao vinho, este sábado, recriou-se o ciclo do pão de milho e amanhã, domingo, é o dia do Senhor, com missa campal e bênção do gado.
No meio de terreiro, em frente à imponente basílica dedicada ao santo que dá nome à vila, está montada uma “casa de lavrador”. Há uma cozinha, com a chaminé sempre a fumegar, de onde sai massa à lavrador carregada de feijões, ossos de assuã, convenientemente acompanhados com batatas e troços (couves com talo) e bolo com sardinhas ou carne. Há broa de milho e vinho tinto verde, servido em jarros de barro generosos e bebido em malgas, para acompanhar.
Ao lado da cozinha, no lagar, as uvas, colhidas ontem, foram já pisadas e estão na primeira etapa do processo para se transformarem em vinho. O perfume toma conta do espaço. “Amanhã, lá pelas 15:00, abrimos o lagar e começa-se a beber o vinho doce”, explica João Fernando, vice-presidente do Grupo Folclórico.
“Limpa-te à toalha, antigamente não havia guardanapos”
Hoje foi dia de ir colher o milho ao campo, mas com os corpos já cansados da vindima de ontem e da noite de trabalho e folia, foi preciso comer bem para aguentar. Naquilo que seria um palheiro ou uma varanda de sequeiro, se fosse uma verdadeira casa de lavoura, em volta de uma longa mesa, estão os elementos do Grupo (são 50 no total) a almoçar, antes de partirem para a labuta.
“Dali para dentro estão todos trajados. Aqui é tudo como antigamente”, conta Maria Ferreira, apontando para as grades de ferro que separam os visitantes da encenação. A própria refeição é um quadro vivo. “Não há guardanapos”, queixa-se alguém, “limpa-te à toalha, antigamente não havia guardanapos”, diz-lhe de lá um dos elementos mais velhos. A preocupação com o rigor do traje e com o respeito pelo que é genuinamente da terra está presente em cada momento.
“Com essa roupa não pegues no milho. Esse traje só serve para vir ao campo trazer o cesto [com o vinho e merenda]”, recomenda Maria Emília. Mariana, ouve indicação e faz que sim com a cabeça. Tem 20 anos e é prova de que o folclore tem futuro. “Foram amigos que me trouxeram. As primeiras vezes não achava piada nenhuma, mas depois fui ficando, agora adoro”, confessa. Mas a mais nova mesmo, é Leonor, tem dez anos e começou com sete. Quem a vê a servir malgas de caldo a fumegar aos visitantes, com desembaraço, dá-lhe um bom par de anos a mais. “Aqui todos trabalham, cada um ajuda no que pode e os mais novos deitam uma mão. Todos somos poucos para tanto trabalho”, dá conta o vice-presidente.
Uvas e milho cultivados pelo Grupo Folclórico
A azáfama dura o ano inteiro, porque as uvas e o milho que agora são colhidos, são cultivados pelo Grupo. “Temos um acordo com o proprietário de uma quinta, nós tratamos da vinha, plantamos o milho, mantemos o terreno limpo e fazemos a colheita”, conta o Martins, de 56 anos. “Portanto, há sempre trabalho”, acrescenta. O Martins já leva 36 anos no Grupo Folclórico e “contam-se pelos dedos os dias que faltei”. Já foi aos EUA e ao Brasil. Mariana queixa-se que ainda só foi aos Açores. Leonor, a mais nova, ainda só viajou por Portugal, mas vai ouvindo com os olhos a brilhar, e o pensamento no momento em que terá a sua oportunidade.
“Nas nossas viagens não há confusões, no autocarro, as mulheres vão à frente e os homens atrás. Só os casados é que viajam juntos”
“Já fomos à Letónia, à antiga URSS, Brasil, França, Suíça, Espanha, EUA, Marrocos… Muitas destas pessoas nunca teriam oportunidade de viajar tanto de não fosse por esta via”, afirma o João Fernando. O grupo é muito solicitado, tanto que já teve de se partir para corresponder aos pedidos. “Uma altura foi metade para a Rússia e os outros para Palma de Maiorca”, conta Maria Ferreira.
Torcato (assim mesmo, como o santo), chega tarde ao almoço. Insinua-se que terá bebido uns copos a mais na noite anterior, mas não falta à chamada para ir ao campo colher o milho. Tem 18 anos e veio para o Grupo porque o padrinho faz parte de direção. Uma das melhores memórias que guarda é dos cinco dias de uma viagem a França.
Há famílias inteiras a particiapar. Tiago, de 32 anos, confidencia que veio dar uma mão na Festa das Colheitas, “para ver as moças”. Acabou por ficar porque encontrou ali a mulher com quem constituiu família. “Nas nossas viagens não há confusões, no autocarro, as mulheres vão à frente e os homens atrás. Só os casados é que viajam juntos”, conta Macedo, que, além de ser o cantador, é o responsável por manter a ordem.
O feitor João dá ordem de marcha e acaba-se o “comes e bebes”, é tempo de ir para o campo. Os mais velhos ainda têm destreza no uso da foice, uma memória muscular de outros tempos. Já os mais jovens são mais desajeitados. À medida que a carrada vai ganhando altura é preciso força física para atirar as “gamelas” para cima, alguns do mais novos optam por descansar e os mais experientes riem-se deles. “Sabe que ontem foi o dia do vinho e no caso deles foi demais”, comenta-se.
Com a carrada feita, num campo do vale, junto ao rio Selho, cabe agora ao “chamador” fazer com que a junta de bois leve o milho encosta acima até ao terreiro. O feitor João deita azeite no eixo, “senão, isto é madeira com madeira, carregado como vai, arde”. Mesmo assim, o carro chia. António Castro, o lavrador que fornece a junta de bois barrosões (premiados), diz que é música para o animais que “acertam o passo pelo carro”. Na descida, quem marcou o compasso foram as concertinas do Grupo, na subida, depois de terem colhido o milho, estão dispensados.
Esta noite, em frente à Basílica de São Torcato, pelas 21:00, a festa continuou com a desfolhada. Nessa altura, volta a cumprir-se a tradição e o homem ou a mulher que encontrar o milho rei (uma espiga com grãos vermelhos) deve beijar todas as pessoas do sexo oposto que se encontram na roda. Mesmo que a chuva apareça para pregar uma partida, a desfolhada há de acontecer na enorme tenda onde também são servidas as iguarias minhotas.