Considerada uma das mais antigas feiras de cebolas no país, com tradição que remonta há mais de um século, a Feira das Cebolas de Gondifelos, em Famalicão, voltou a realizar-se este domingo, com as condicionantes típicas de tempos de pandemia, mas as vendas até que correram melhor que em outros anos.
O MINHO esteve no parque de lazer de Gondifelos (antigo parque de campismo) e falou com alguns dos responsáveis que fazem movimentar este certame.
À venda avulso, em forma de ‘cabo’ (entrançar) ou de ‘moussa’ (enpinhar), toneladas de cebolas saem diretamente dos campos para o consumidor final, sem ‘herbicidas’ nem nada que possa estragar a qualidade saudável deste produto que tem vários fins
A arte de ‘encabar’
Maria Celeste, de 90 anos, é uma das guardiãs da arte de preservar a cebola e torná-la num objeto de decoração típico das cozinhas tradicionais minhotas. A anciã, residente em Gondifelos, explica que as cebolas são ‘encabadas’ ou ‘enmoussadas’ para que durem mais tempo.
“Fazemos estes cabos com palha ou fio para afastar as cebolas, porque se estão todas juntas têm tendência a apodrecer mais rapidamente”, explica.
É que as cebolas são como os humanos em tempo de pandemia. Se estão aglomeradas, basta uma estar doente para rapidamente contaminar as restantes. Como nós usámos máscara, as cebolas usam o cabo, tudo em nome da prevenção para evitar maleitas.
Mas Celeste, que ‘encaba’ cebolas há mais de 80 anos, já está reformada destas lidas. É a filha de Celeste quem faz a venda durante esta feira tradicional, Maria Margarida Meira, que já se tornou num dos ícones do certame.
“Comecei a vir por causa da mostra associativa que se fazia aqui, embora este ano não haja por causa da pandemia”, lamenta. Explica que aprendeu a ‘encabar’ com a mãe “há mais de 60 anos”, e que esta aprendeu com uma empregada que a família tinha.
Das cebolas que vende, recomenda a utilização para vários fins: “refugados, saladas e até para fazer chá, como por exemplo o da casca que ajuda a aliviar a tosse”, conta. E é tudo sem herbicidas: “podem fazer chá à vontade que o único químico que levou foi o sulfate, para não arejar”.
Ainda sobre a arte antiga de encabar (ou entrançar) as cebolas, Margarida explica que, em breve, vai passar a tradição para os mais novos. A produtora tem dedicado muito do seu tempo, ao longo do ano, a ensinar crianças da freguesia a tratar as cebolas.
Conta o presidente da Junta, Manuel Novais, que “as crianças já fazem fila à porta da Margarida para aprender a fazer os arranjos nas cebolas”. É que habitualmente há um cortejo, onde a cebola enfeitada é rainha. Mas este ano a covid-19 trocou os planos a todos.
Sofia, de nove anos, já entrança cebolas desde os quatro: “Gosto muito, acho que fica muito bonito”, disse a pequena à nossa reportagem, devidamente autorizada pela mãe. E diz Margarida que a “pequena tem muito jeito, vai ser o futuro” da feira.
Mas não é só Sofia. Dezenas de crianças aprenderam a arte. “Os mais novos gostam muito disto e daqui a uns anos vão ser eles que fazem a venda e eu vou estar ali como a minha mãe, só a assistir”, diz Margarida, entre risos.
Mas, enfeites à parte, que isto é um mercado onde também interessa vender, Margarida admite alguma surpresa pela positiva em relação às vendas deste ano.
“Por acaso está a correr muito bem, já vendemos cerca de uma tonelada em poucas horas, mais quilo menos quilo”, relata. Apesar de vender ao quilo, os cabos de cebola (a três euros cada), também têm tido saída.
Destino obrigatório no fim da missa
Quem também visitou a feira foi o padre Vítor Ribeiro, pároco de Gonfidelos. Mas só depois da missa. A O MINHO, o sacerdote confessa ser apreciador desta tradição secular, embora “não veja muitas cebolas na freguesia durante o ano”.
“Acho que é importante esta feira, está na raiz das pessoas e elas gostam disto”, assegura. Antigamente, o certame realizava-se no adro da igreja, tendo mudado para o parque de lazer em 2015, mas o pároco não vê mal.
“É bom, aqui há mais sombra por causa do arvoredo, há mais espaço, acho que foi uma mudança positiva”, reforça. “Até eu venho cá, mas só no final da missa”, brinca.
Feira começou para acertar preços e escoar produto
Manuel Novais, presidente da União de Freguesias de Cavalões, Outiz e Gondifelos, não tem dúvida de que o local é o indicado para realizar esta feira, sobretudo este ano, onde o distanciamento é rei.
“Esta feira é secular, antigamente fazíamos no adro mas, há 5 anos, achámos por bem mudar para o parque de lazer, por existir melhores condições e por ter arvoredo”, conta, admitindo que “no primeiro ano não foi fácil” mas “onde já todos se habituaram”.
“Aqui, os produtores vendem todo o tipo de produto produzido no campo, não é só a cebola: cenouras, uvas, batatas, melão, alguns produtores são de cá, outros vêm da Póvoa [de Varzim] e de Barcelos”, destaca.
Sobre a importância da feira para a freguesia, Manuel Novais crê que esta é “em larga escala”. “É uma feira secular e já uma referência. Diz-se que começou para que os produtores locais escoassem o produto e também para combinar preços da cebola para o ano todo”, contextualiza.
Em tempos de pandemia, o autarca admite que o cancelamento do evento “nunca foi hipótese”. “Sempre tivemos na mente assinalar a feira, não interessava a dimensão, então colocámos as devidas condicionantes, como uso de máscara obrigatório e a utilização de gel desinfetante à entrada e saída, e está a correr melhor do que aquilo que pensávamos”, assegura.
“Desde as 07:00 horas que temos famílias a entrar e a sair e fazem muitas compras. Há produtores que já tiveram de repor o stock e ainda só é de manhã [reportagem realizada entre as 11:00 e as 12:30]”, afere.
Para ajudar no controle do distanciamento, a autarquia conta com o apoio dos Escuteiros e do Rancho Folclórico local. “Eles é que controlam o distanciamento, o uso de máscara e a higienização à entrada. Graças a isso, não houve necessidade de solicitar qualquer tipo de policiamento”, revelou Novais.
Chouriças e morcelas de cebola para quem gosta de enchidos
Não há polícia mas há transformação de enchidos, porque nem só da cebola pura vive esta feira. Fernando Pereira, proprietário do Fumeiro do Fernando, uma indústria de transformação de carnes situada na freguesia, traz ‘chouriças de cebola’ e ‘morcelas de cebola’ para animar o paladar dos amantes dos enchidos. E não foi fácil chegar à receita.
“A cebola acaba por oxidar a carne, tornando-a esverdeada, por isso tivemos de fazer vários testes até conseguirmos chegar à perfeição do produto”, explica o jovem empreendedor, filho da terra, e integrante no Famalicão Made In, um apoio camarário a empresários famalicenses que valeu a venda dos produtos no E.Leclerc.
E.Leclerc de Famalicão promove vendas de 30 produtores locais
“Já faço esta feira há doze anos depois de um convite da junta de freguesia. Temos talhos mas as pessoas nem sempre sabem que os nossos produtos são feitos por nós”, situa.
Três toneladas vendidas em poucas horas
Mas também há produtores de fora da terra. Carlos Costa e André Costa vêm de Barqueiros, Barcelos, e já venderam três toneladas em poucas horas.
“Este ano está a correr muito bem, as pessoas aderiram e temos escoado bem o produto”, diz Carlos, enquanto André completa com uma justificação para o bom despacho.
“Não sei se tenho razão, mas acho que com a pandemia, as pessoas vieram buscar mais cebolas para durar para muito tempo, caso isto entre tudo em isolamento outra vez”, atira.
Há 25 anos presentes neste certame, os Costa não são feirantes, como fazem questão de dizer.
“Somos produtores, vendemos para mercados, supermercados, restaurantes, entre outros locais. As únicas feiras que fazemos são as duas no mesmo dia: esta de Gondifelos e uma na Maia”.
“Esta cebola, frita, é muito boa”
Quem apreciou a qualidade das cebolas da feira foi o casal Mota, da Barroca, em Gondifelos. Firmino e Fátima vieram às compras e, este ano, levam pimentos e ‘cebola da pequenina’, que frita “é muito boa”.
“Este ano só compramos cebola pequena porque sou só eu e o meu marido em casa, por isso não vale a pena estar a comprar muito”, diz Fátima.
Sobre a feira, assume ter pena que este ano não haja o tradicional desfile das associações nem outras animações que ocorrem habitualmente, mas está satisfeita com as medidas de segurança adotadas.
“Está tudo muito bem organizado, têm máscaras à porta para quem não trouxer e toda a gente tem de desinfetar as mãos à entrada e à saída. Acho que a organização fez um papel muito bom”, sentencia.
Com milhares de visitantes a deslocarem-se ao parque de lazer durante este domingo, a feira prolonga-se até final da tarde, início de noite, sem nunca descurar o distanciamento e todas as outras medidas que refletem o tempo de pandemia em que vivemos. E que já terá sido vivido no início do século passado, aquando da gripe espanhola. Mas as pandemias passam e a cebola fica, pelo menos em Gondifelos.