Longe dos locais de eleição para que a sua música se faça ouvir, produtores portugueses de techno têm as vidas artísticas em suspenso há um ano, devido à pandemia, olhando para o futuro próximo sem expectativas. Dias antes do anúncio pelo Governo do regresso dos “grandes eventos exteriores e eventos interiores com diminuição de lotação”, a partir de 03 de maio, a Lusa falou com sete pessoas ligadas ao meio, entre os quais o DJ e produtor de Barcelos Lewis Fautzi.
Luís Gonçalves, de Barcelos, tem 29 anos e há mais de metade da sua vida que está ligado à música de dança: como Lewis Fautzi lançou pelas principais editoras do meio, percorreu 37 países, criou a sua própria editora cedo no caminho profissional e está, nas suas próprias palavras, onde quer estar em termos editoriais.
“Mal terminei a minha escola já estava a construir a minha carreira, até hoje, nunca fiz mais nada. Trabalhei sempre em música e desde muito cedo. Com 14 anos já ganhava uns 400 ou 500 euros a pôr música. Já era muito dinheiro e, aos 20 anos ou 21, já morava sozinho e tinha uma vida estabilizada através da música”, disse à Lusa o DJ e produtor, natural de Barcelos, a quem o confinamento afetou mais “psicologicamente do que monetariamente”.
No entanto, a pandemia travou uma carreira descrita como “meteórica” no meio: “Estava num ponto alto da minha carreira, se calhar no melhor momento da minha carreira. Tinha muito, muito trabalho. Dava-me ao luxo de escolher o que queria e, de repente, do tudo passámos ao nada”.
“Estávamos em janeiro [de 2020], quando se começou a ouvir qualquer coisa [sobre o coronavírus], eu tinha o ano praticamente fechado. Eu tinha o mês de março para férias porque ia tocar seguido, tinha uma ‘tour’ na América, de abril a junho. E chegámos a fevereiro, a última data que fiz foi no Fabric, em Madrid, e acabou. Já fez um ano que nunca mais pus música”, lamentou Luís Gonçalves, que, como outros, acreditava que a paragem ia “passar rápido”.
O músico reconheceu que a interrupção forçada levou a um bloqueio criativo: “A frustração é que, depois de tantos anos a trabalhar muito para conseguir chegar onde chegas, quando estás no ponto alto da carreira, ficas sem nada. Não é sem nada, o meu nome continua lá, mas a motivação que eu tinha desapareceu. A motivação que tinha de vir para o estúdio, de experimentar coisas novas, desapareceu tudo”.
As ideias que trazia do fim de semana deixaram de estar presentes e a experiência de testar as faixas ao vivo antes de as gravar, também, o que fez com que em 2020 tivesse editado apenas um EP, tendo dois novos trabalhos previstos para este ano.
“‘Clubbing’ tem muito a ver com a proximidade das pessoas”
Outro dos nomes que viram o ponto alto da carreira suspenso pela pandemia foi o de João Rodrigues, que, com o projeto Temudo, tinha lançado, em fevereiro de 2020, o seu segundo EP na escocesa Soma Records, “que atingiu o número 1 de vendas no [seu] estilo de ‘techno’ numa das mais conhecidas lojas […] de música digital, que é o Beatport”.
“Assim que chego àquela meta de ‘bestseller’, tenho uma música com 100 mil ‘plays’ no Spotify, rebenta a pandemia e parou tudo”, lembrou à Lusa o músico de Torres Vedras, antes de recordar o percurso até àquele ponto: “Acabo uma licenciatura em 2009, começo a dedicar-me à produção, estou ali a ‘marinar’, primeiro no drum’n’bass e depois no techno. Finalmente, quando começa a dar frutos, já tinha um contacto próximo para uma ‘tour’ na América Latina, tinha um contacto para a Coreia [do Sul], a China sei que ia aparecer, na Europa já ia a todo o lado, […] após todos estes anos de batalha, a pandemia rebenta”.
Apesar de ter visto o calendário de datas ao vivo desaparecer, João Rodrigues conseguiu aumentar o seu trabalho de masterização, fruto de vários anos de trabalho técnico na área, num percurso que alcançou a subsistência exclusivamente da música em 2015.
“[Com a pandemia] perdi todo o meu ‘incoming’ de passar música, não recebo um ‘cachet’ por um ‘gig’ desde a minha última data, em 07 de março [de 2020], já lá vai quase um ano, mas o meu projeto de masterização cresceu muito. Sinceramente, hoje em dia, não me posso queixar muito”, disse o artista de 32 anos, que teve, no mês passado, um “marco” da carreira com o lançamento de um EP pela editora alemã Klockworks.
Por seu lado, Artur Moreira, conhecido por Nørbak, também pode dizer que teve o “ponto alto” da carreira já este ano, com o lançamento do seu álbum de estreia, intitulado “Flesh to Ashes”, pela espanhola Warm Up Recordings, e afirmou à Lusa que aproveitou o confinamento “para desenvolver algumas técnicas novas” e colaborar com outros artistas.
“Por um lado foi bom, porque fiz coisas que já estava a adiar há algum tempo. Depois, a parte emocional tem um peso. Supostamente ia ter um ano excelente, ia fazer a minha primeira ‘tour’ na América do Sul, ia à Rússia pela primeira vez, à Bulgária pela primeira vez, ia voltar ao Tresor [em Berlim], depois de três anos de me ter estreado lá. […] Emocionalmente, gerir essa desilusão foi um bocado complicado ao início e demorou a aceitar, mas foi por um bem maior”, disse à Lusa o DJ e produtor de 24 anos.
Artur Moreira, natural de Amarante, considerou que, apesar do impacto emocional, conseguiu lidar bem com a situação e adaptar-se ao novo contexto, enquanto espera pela reabertura dos clubes e pelo retomar dos eventos, tendo, como outros dos artistas com quem a Lusa falou, começado a dar aulas de produção musical ‘online’.
“Tivemos todos que nos adaptar um bocado, mas a música, para mim, continuou. Sei que há muitos artistas que tomaram a decisão de esperar e adiar os lançamentos, [mas] eu mantive tudo igual. Claro que lançar música eletrónica neste momento é complicado porque é música que é vivida no momento, mas continuei a fazê-lo e hei de continuar”, disse o músico.
Em situação diferente encontra-se Gustavo Lima, do projeto A Thousand Details, que “sempre [foi] uma pessoa que teve trabalho e fazia música um bocado como ‘hobby’”, até ao momento, em 2014, em que decidiu dedicar-se de forma mais intensa ao lado musical.
“Apesar de não conseguir viver disso, abri as portas para mais tarde o fazer”, afirmou o músico de 33 anos, que viu a empresa internacional na qual trabalhou entre 2017 e 2019 não lhe renovar o contrato, a poucos meses da chegada da pandemia.
“Em 2020, com uma coisa muito mais solidificada, com um nome mais conhecido na área do techno, estava tudo a correr muito bem, ia tendo duas ou três datas, tanto cá como fora, até ao famoso março. Em que na semana anterior ao confinamento estava em Barcelona a passar música como se nada fosse. Claro que foi uma grande facada, porque já tinha muitas mais datas planeadas para o resto do ano”, disse à Lusa o artista do Porto.
Apesar da situação laboral e da interrupção que a pandemia lhe veio trazer, Gustavo Lima vai ao encontro das palavras de outros músicos quando diz que “este período, que é uma verdadeira desgraça para o mundo inteiro, também tem algumas coisas boas” por aumentar a proximidade digital entre pessoas que antes estariam mais afastadas, quer física quer virtualmente.
“Como estamos todos em casa e as pessoas andam mais tempo fora, em ‘tours’, e têm menos tempo para conviver ou falar com outros artistas, acabou por cair um bocado essa cortina e vi que, apesar de ser um ano muito mau, essa miséria também teve algo positivo: pude trabalhar muito mais na minha música. Retorno financeiro não aconteceu, mas ainda deu para fazer algumas coisas”, disse o artista, que mantém a procura por trabalho, e continua a desenvolver o lado criativo e a estabelecer contactos, apostando ainda no ‘streaming’ sobre o seu processo de criação.
A DJ e produtora Vanessa Sousa, de Viseu, mudou-se, temporariamente, para Tilburg, nos Países Baixos, por ter decidido “melhorar o inglês [e] guardar algum dinheiro”, por oposição a permanecer em Portugal, onde poupar é “impossível, é ‘chapa ganha chapa gasta’”.
Fundadora da editora Elberec, com um programa na Rádio Quântica, a artista, também conhecida por Valody, disse à Lusa estar numa fase em que quer fazer a sua própria música “com calma porque ainda há muito a melhorar”, mas vai lançando outros nomes pela sua ‘label’, mesmo sem cobrir os custos dos lançamentos.
“Ter uma ‘label’ dá trabalho, mas não consigo pagar os custos que tenho com a masterização. Faço isto por amor à música. É difícil viver disso. A nível das festas e dos eventos que organizava em Viseu, […] esses eventos ajudavam financeiramente. Com ‘streams’ não dá para ganhar dinheiro”, afirmou a artista, a partir de Tilburg, de onde regressa em julho.
Vanessa Sousa acredita que o facto de o único palco atual ser o digital tem uma vantagem: “Os DJ que antigamente não tinham oportunidade de ir tocar aos grandes sítios, agora se calhar estão a conseguir-se mostrar. Eu estou a conhecer muitos talentos e sinto que em Portugal estão a produzir muito. Está a ser uma bomba a nível criativo que está a acontecer na cena eletrónica portuguesa. Nem tudo é mau.”
Também sem nunca ter vivido exclusivamente da música e por isso admitir que estará numa situação menos difícil do que quem perdeu a totalidade dos rendimentos, o DJ e produtor Vanderley das Neves, de Loures, disse à Lusa sentir que nunca produziu tanto como em 2020: “Provavelmente por estar mais tempo em casa. Porque queria terminar alguns projetos também e, portanto, acho que sim, acho que o ano de 2020 em termos de produção, para mim, foi bastante positivo”.
Sociólogo de formação, um dos fundadores do projeto Escuro, Vanderley das Neves realçou ter conseguido “concentrar-se mais e juntar algum dinheiro, que provavelmente não conseguiria fora de um contexto de pandemia”, para comprar equipamento de produção.
Com nome artístico Van Der, o músico de 31 anos acredita que 2021 está “de mãos dadas com 2020” em termos de retoma, estando a planear assinalar o aniversário do coletivo Escuro com uma sessão de ‘streaming’, em abril, e só admitindo uma reabertura do setor “lá para setembro ou outubro”.
Já para Marcos Ferreira, que encarna os projetos Enkō e Ocaso, a pandemia de covid-19 fez com que repensasse a sua posição na cena musical.
Formado em Tecnologia Musical no Reino Unido, o que lhe abriu as portas em diferentes áreas do som, Marcos Ferreira trabalha neste momento em videojogos, mas lamenta as mudanças causadas pela pandemia: “Por um lado, estou muito contente com o que estou a fazer na área dos videojogos, por outro lado obriga-me a estar quase exclusivamente sempre no estúdio, e isso traz-me um cansaço muito grande. Ou seja, em termos criativos a área da música acaba por sofrer porque não tenho vontade de fazer música”.
Marcos Ferreira resume o momento atual da área: “O mundo do ‘clubbing’ tem muito a ver com essa proximidade das pessoas. Estar a fazer as coisas na internet e ‘online’ acaba por tirar um pouco a magia do porquê de nós fazermos isto. Por um lado, acho que, individualmente, é bom para evoluir e descobrir coisas novas, por outro, acho que a rotina que havia nos faz falta e é importante que regresse”.
Reportagem de Tiago Dias, da Agência Lusa.