Artigo de Vânia Mesquita Machado
Pediatra e escritora. Autora dos livros “Microcosmos Humanos” e “Humana Seja a Nossa Dor”. Mãe de 3. De Braga.
Quais são as nossas certezas absolutas?
Que somos humanos – certeza quase axiomática.
«Quo vadis?»
«Ser ou não ser, eis a questão»
«Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma» …
Milenar, essa teimosia constante do Homem em definir o indefinível, a necessidade de respostas concretas para perguntas que nunca serão respondidas enquanto for feito de carne, osso e algo mais, aquela parte da pessoa que não tem localização anatómica precisa embora não faltem teorias para a situar: o que somos, não apenas explicável em termos psicológicos, algures entre egos e alter-egos, o que somos, não apenas explicável pela complexa lógica filosófica, o que somos, não só confinado a um mero corpo perecível.
A Medicina, como ciência ávida pela exatidão tem de se ir resignando a uma imperfeição fruto de sermos mais do que orgânicos, e tantas vezes está fora do controlo curar, mesmo seguindo competentemente a leges artis dos protocolos mais atuais e da tecnologia mais recente para o diagnóstico e para a terapêutica mais adequada para tratar as doenças. E outras vezes surge a cura, inexplicavelmente.
A ciência humana não se compartimenta em fórmulas matemáticas apenas com um resultado correto, não só pela subjetividade de quem observa, da dificuldade de explicar de quem padece, mas também pelo que não está, neste mundo, ao nosso alcance decidir.
O que somos?
Nascemos, vivemos e morremos, outra certeza consensual (nem esta o é, para os que acreditam na reencarnação).
E antes de nascer? E depois de morrer?
Misteriosa essência, a nossa, que entre a maravilha das coisas boas da vida que nos fazem sentir bem e o incómodo sofrimento, calcorreia os anos na perplexidade dessa alternância de sentimentos e emoções, ao sabor do que o destino nos oferece e ao sabor das escolhas que vamos fazendo através do nosso livre arbítrio, se lucidamente capazes.
Conforme as vivências, a personalidade e o carácter de cada um, tendemos mais para a racionalidade ou para a emoção.
Podemos ser pragmáticos, analisando o que consideramos que somos mentalmente de uma forma quase análoga a uma rede informática, input/output, concluindo que não seremos mais do que somos evolutivamente entre o nascimento e a morte.
Ou podemos ser espirituais, navegando para além do que nos parece que somos, e sentirmos algo superior inexplicável, que vai tocando pontualmente as nossas vidas, mesmo que não sejamos sempre felizes, mesmo que não exista motivo aparente para acreditar.
Importante é aceitar a diferença.
Fundamental é não impor ideologias, crenças, formatos.
Cumprindo essas premissas, todas as formas de estar na vida e encarar o depois são válidas.
A tolerância é um valor em queda livre, dado o receio crescente do extremismo fundamentalista em crescimento exponencial, que cega o ser humano e o leva à violência gratuita, à sangria desatada de inocentes em nome de crenças, e que consequentemente coloca no mesmo saco todos os que seguem uma determinada religião impregnada pelo fanatismo violento de alguns, em nome de Deus.
Os estudiosos de teologia que interpretam cuidadosamente os dogmas de cada religião, não encontram justificação para estes atos vândalos de terrorismo. A imposição do medo justificada pela Guerra Santa é uma falsa interpretação de textos religiosos.
Mas sou uma leiga, apenas.
A meu ver, é mais fácil o caminho da fé.
Tenho sorte em acreditar, e se em parte é resultado da educação que recebi, sinto que a maior parcela resulta de reflexão pessoal, da forma como perceciono o que me rodeia, e de algo que não sei explicar.
Mas também não procuro exaustivamente o porquê.
Como não sei porque prefiro o sabor do chocolate ou o perfume da terra molhada.
Quem é Deus?
Quem sabe a resposta?
Quem pratica o Humanismo está tão perto…
E o que importa a pergunta? O que verdadeiramente importa não é a pergunta ou a resposta, mas um gesto, tantas vezes até invisível.
Acreditar que somos mais do que somos neste mundo é uma dádiva.
Fui pela primeira vez peregrina a Fátima este ano, e termino com o que me motivou a escrever estes pensamentos.
Ao longo do percurso, apesar da dor física e do cansaço, uma corrente invisível de solidariedade e de alegria era partilhada por todos.
Um caleidoscópio colorido de idades, estratos sociais, e mesmo de crenças * (embora predominasse o denominado culto mariano), inundou Fátima, um vitral de motivações, e de formas de expressão de uma serenidade sentida por todos.
A forma de acreditar e de o manifestar dependente das raízes culturais e da educação, mas o importante era o fluir de uma energia positiva, uma união em torno da libertação pessoal das amarguras e da renovação da esperança.
Figura central deste fenómeno ímpar, o Papa Francisco.
Genuíno, líder sem se impor, que com palavras simples tocou intimamente no coração de todos os presentes, que se sentiram especiais e únicos.
Não houve hipocrisia, não se sentiu medo ou falsidade.
O ceticismo de quem criticou á sombra da pretensa liberdade de expressão, feriu levemente quem realmente acredita, mas não deixou marcas. O que aconteceu em Fátima a 12 e 13 de maio foi na verdade superior e imune a qualquer azedume anticlerical.
Em rebanhos existem sempre ovelhas negras, e não pode o justo pagar pelo pecador. Os lobbies do Vaticano não representam o catolicismo.
Sussurrando para o interior dos presentes e de quem assistiu de longe, Francisco falou em voz de Céu, em timbre de Universo, com a janela da alma aberta, acariciou o desassossego com mensagens de paz, versos cantados de utopia, apelando à solidariedade e à esperança.
Desarmado, com a determinação no olhar de um ser iluminado, ciente da importância de cada ser humano, sem se preocupar com o carimbo da religião, guiado pela tolerância e pela vontade da união fraterna dos seres humanos.
(* a «mão de Fátima» é um símbolo de bênção, secular, presente em várias culturas desde a antiga Mesopotâmia (atual Iraque), transversal a religiões panteístas (a mão de todos os deuses) e monoteístas (significando a existência de Deus omnipresente).
Na religião cristã é um símbolo de boa sorte, a mão de Maria.
É o talismã islâmico predileto de proteção; (em árabe, Khamsa, é o número cinco: quinta-feira, dia ideal para peregrinações). Fátima, filha de Muhammed e de Aisha, na religião muçulmana xiita, tem atributos semelhantes aos da Virgem Maria da religião católica: Mãe universal, pura e sagrada.
No Médio Oriente, este talismã lembra as raízes comuns do judaísmo e do islamismo, sendo um símbolo de esperança e paz para quem anseia pelo fim da guerra religiosa.
Este símbolo está presente também no budismo (dissipação do medo), e sem conotação religiosa representa a feminilidade.
Um símbolo humano universal…)