Artigo de Vânia Mesquita Machado
Pediatra e escritora. Autora do livro Microcosmos Humanos. Mãe de 3. De Braga.
Querido Professor,
Agora que ultrapassou a misteriosa fronteira entre a vida e a morte, com certeza que as palavras que lhe escrevo chegarão até si.
Tal como o Professor, acredito no que vem a seguir ao nosso abandono espiritual do corpo perecível, e embora seja apenas mais uma entre as milhares de homenagens sinceras que lhe têm sido prestadas desde que partiu, dado ter sido não só uma personalidade marcante em diversas áreas da Medicina mas também um ser humano dotado de uma generosidade, empatia e solidariedade notáveis, sinto uma vontade irreprimível de o fazer, não porque goste particularmente de elogios fúnebres (muito pelo contrário, embora respeite os ritos como parte essencial da cultura humana), mas porque a força que me impele a escrever é superior à minha vontade, ou seja, mesmo correndo o risco de parecer querer protagonismo não me vou ralar, quero falar consigo para lhe agradecer, e sinto que finalmente o estou a fazer frente a frente, como o fiz há cerca de 20 anos, durante o meu exame oral da cadeira de Deontologia Médica do meu 4º ano de Medicina.
Faço-o como aluna e como adulta, porque me cruzei com a sua admirável forma de estar no mundo em duas fases diferentes da minha vida, e bebi avidamente os seus ensinamentos. Escrevendo estou também a reviver essa experiência que me marcou indelevelmente, e sei que meditando nas reflexões das minhas próprias memórias posso aperfeiçoar a caminhada dos meus amanhãs, a vida vai nos dando estaladas secas que nos anestesiam temporariamente para o que realmente vale a pena, e são estas pausas que podem fazer a diferença entre viver em plenitude ou sobreviver em modo automático, mantendo vícios e defeitos sem tentar a mudança.
Talvez não fosse totalmente vocacionada para a Medicina.
Nunca soube lidar tão harmoniosa e lucidamente com a morte, com a exposição cruenta da fragilidade humana e com o sofrimento como o Professor. Sendo à sua semelhança uma pessoa de fé, a minha sensibilidade que me ensinou a escrever e me vai alimentando o gosto pela escrita, manietou-me em parte a capacidade de aceitação da dor; ao longo dos anos fui aprendendo a fazê-lo, embora com recaídas frequentes na labilidade emocional, talvez também porque escolhi ser médica de crianças, especialidade extremamente gratificante mas desumanamente dolorosa quando as limitações inerentes à ciência médica me impedem de as voltar a ver sorrir, brincar e crescer, sendo assaltada por um sentimento de revolta, que disfarço nas visitas às enfermarias, tentando pela empatia ajudar os pais a atravessar a tortura de verem os seus filhos sofrerem cronicamente, totalmente impotentes.
O Professor assimilou a aceitação da morte após um percurso na Medicina marcado por milhares de autópsias sem se insensibilizar; nenhuma era realizada sem lhe imprimir o seu cunho humanista, tal como lemos nas homenagens póstumas: «a primeira coisa que fazia era olhar para o cadáver como pessoa e pensar como teria sido a sua vida».
O meu primeiro agradecimento é como ex-aluna.
A cadeira onde me cruzei consigo nas aulas teóricas era das que mais preenchia o anfiteatro.
Não era a única fascinada com a filosofia aplicada à Medicina, com as questões relacionadas com a bioética, todos o ouvíamos atentamente, e sei que tal como eu os meus colegas sentiam o brainstorming que pairava nesses minutos de lições, saíamos com mais dúvidas do que certezas, e era esse certamente o seu objetivo, que nos debruçássemos sobre os corpos enfermos com uma visão abrangente para além da fisiopatologia e da terapêutica médica, que discutíssemos entre nos, refletíssemos e tomássemos posições esclarecidas sobre o início e o fim da vida, definindo as nossas ideias tendo em conta o nosso espírito de Missão, assimilado mais tarde pela leitura sentida do juramento de Hipócrates, antes de iniciarmos a prática médica.
Absorvi intensamente os fundamentos da Medicina como ciência humanista que me ensinou, e que são em grande parte a minha motivação para ser médica.
Agradeço-lhe em segundo lugar por me ter cruzado com o seu testemunho no livro «Envelhecer sem ficar velho», de Maria José Costa Félix, quando assimilava pela leitura as vivências da terceira e da quarta idade, decidida não sei porquê a escrever um romance com esse pano de fundo, enquanto investigava para escrever o livro que em breve vou editar.
Li-o meses antes de a vida lhe ter pregado a partida do atropelamento, em 2014.
Senti como se ouvisse a sua voz jovial e o seu sorriso otimista, ao descrever a sua família, os seus hábitos saudáveis que incluíam caminhadas de uma hora «manhã, tarde ou noite, chuva ou não, frio ou calor.»
Com 85 anos, mantinha uma vida agitada, ainda ensinava Bioética não só em Portugal mas no Brasil, lia muito e pensava.
Aos 80 anos recebeu um Ipad que utilizava com facilidade.
Tinha, como referiu no livro, uma tranquilidade total em relação à sua morte. «Não tem pressa porque não tem nada que ter pressa».
Cito em seguida algumas das suas frases do livro, que me serviram na altura de inspiração, e que acredito que podem também fazer muita gente pensar:
«Pergunto a pessoas próximo dos 60 se já começaram a programar a sua nova vida; quando me dizem não me interesso por nada, não sei por onde começar…sugiro: descubra qualquer coisa!»
«Cada um nasce com a sua lotaria genética, mas pode decidir a forma como encara a vida e se relaciona consigo próprio.»
«Os ossos, músculos e articulações vão pagando o preço do tempo…Estar mentalmente ativo leva à estimulação cerebral e à criação de novos neurónios; para isso é necessário manter viva a curiosidade. Por isso é que (…), o Manuel de Oliveira continua interessado a fazer os seus filmes»
«Fundamental é não pararmos: o movimento físico, emocional, mental, espiritual (…) Para além da curiosidade, a alegria deve ser a marca do sénior: ajuda a avaliar o mundo em função de emoções e sentimentos, atenuando a componente de análise racional do mundo»
«O acaso não se explica. Tem de haver algo que esteja fora e que não sei como é. Eu tenho esta vertente religiosa, mas com sentido crítico permanente em relação às formas de organização da religiosidade, como a transcendência é tratada e governada na Terra neste mundo»
«A pessoa pode achar que não anda a fazer nada nesta vida e um dia descobre q anda a fazer algo muito importante, que é viver…
Que esta vida não acaba apenas se transforma, continua a existir sem corpo. Não se pode pretender demonstrar a existência de Deus, porque Deus não existe. Deus é! (…) A forma desta evolução é incomunicável, A fé acontece. (…) Intuímos a existência de Deus no amor pelos outros, e ambos intuímos, o que ama e o que é amado, nāo ficamos sós.»
«Eu não me zango com Deus por ter um cancro na próstata, Deus não é um administrador da vida das pessoas. Deus criou-nos livres e portanto responsáveis. Como objeto da biologia que sou, tenho um corpo que a certa altura teve uma alteração que o podia matar, antigamente é que havia a ideia que as doenças eram castigos de Deus; são situações comuns normais da vida. O primeiro sentido da vida é biológico (…). Depois há um sentido social (…)»
«Aceitar contrariedades e injustiças é um teste de fé. Acredito na vida.»
Termino com um até breve, se Deus quiser.
Com carinho, de uma sua ex-aluna de Medicina, e ainda aluna na vida,
Vânia
Fique a par dos Artigos de Vânia Mesquita Machado. Siga O MINHO no Facebook. Clique aqui