São Bartolomeu: do Mar e dos Medos

ARTIGO DE MANUEL PIMENTA

Já me dou com São Bartolomeu há largos anos. Desde catraio que celebro o seu dia como o de poucos outros santos, tão grandiosas costumam ser as suas festas.

Os progenitores do nosso Minho, sempre nos deram mais liberdade para ir às romarias do que às soturnas disco-nights. Da minha parte só encontrava vantagens; nunca gostei de entrar em casas com porteiro, menos ainda quando me olhavam de alto a baixo.

A minha liberdade começou nas festas populares e foi assim que cresci sem mazelas. São Bartolomeu e os seus colegas foram-me afastando de todos os males que pairaram sobre a minha inquieta juventude. Hoje sou-lhes tão grato por isso.

Entre romeiros sinto-me em casa desde puto. Ensinaram-me a ser farmacêutico e a olhar o mundo de forma a que um dia o pudesse escrever.

Além disso, nunca me apaixonei tantas vezes como em dias de romaria. Por raparigas, por senhoras, por velhas e velhos gaiteiros. Até por parelhas de bêbados e outras curiosas criaturas. Fascina-me a solenidade caótica de um terreiro em festa. Gosto da forma como a Fé e o ócio se entrelaçam, em batalhas permanentemente irrepetíveis.

Este São Bartolomeu teve ainda mais sabor por ser novidade. Há muito que morria por vir às festas do mar, mas acabava sempre por preferir as noitadas da Barca (animadas vésperas, também em sua honra).

Este ano foi o primeiro em que abdiquei dessa noite. Ao São Bartolomeu do Mar tem que se ir logo pela manhã. É cedo que se desenrolam as suas mais inusitadas tradições.

A primeira coisa que se faz é ir à Igreja. Pelo menos é assim que deve ser; até eu que estou na quinta divisão dos crentes tenho vontade de o fazer. Creio que parte da minha Alma deseja ser contaminada pela Fé, ainda não percebo é bem porquê…

Ao entrar, reparei que todos se perfilavam para passar por baixo do Andor do Santo. Segui atrás deles, tentando beber da solenidade ali presente.

– Tem que ser três vezes. Ouvi de alguém entendido enquanto dava a primeira volta.

Os miúdos levavam galinhas pretas, alugadas no galinheiro do adro. Iniciava-se assim o curioso ritual que ali se vai perpetuando ao longo dos tempos: A libertação dos medos.

Falei com uma jovem mãe com um ar mais urbano do que as outras. Amparava a cria com ambas as mãos enquanto dava as suas voltas. Creio que sentiu necessidade de se explicar ao ver o meu olhar curioso: – Ele tem medo de tudo, não sei mais o que fazer.

Dali seguimos todos para o mar. É lá que se processa a última parte deste Auto de Fé. Este ano a maré estava baixa e não metia medo a ninguém; só que os medos a tirar ali são outros… e desses os catraios não se podem simplesmente afastar.

São tantos os medos a perder durante a infância, e o mundo é uma coisa tremenda para quem tem poucos anos disto. É suposto sermos bons, alegres, atentos, educados, inteligentes, engraçados, meigos, calmos, simpáticos, silenciosos, sinceros, generosos e respeitadores, e ainda ter de gostar dos outros todos.

Ah.. e se possível não termos medo de nada; tudo virtudes que os adultos vão mandando para as ortigas.

Apesar do batalhão de mirones, o ritual é deveras comovente.

Enquanto observamos, creio que todos nos sentimos no lugar daquelas frágeis criaturas. Não deve ser fácil entrar no mar pela mão de um estranho. Que intermináveis serão aqueles segundos debaixo das águas frias, mergulhados pela mão de alguém que ainda há pouco lhes tinha dito: – Não tenhas medo.

Felizmente tudo acaba numa apaziguadora toalha, trazida por braços familiares. Que bem lhes deve saber ouvir aquele sussurro ternurento: – Já passou, meu filho.

Saí da praia um pouco combalido. Medos não sei se perdi, mas sentia-me como se me tivessem tirado as rodinhas da bicicleta; tanto que acabei por comprar um boné do Sporting por um euro. Sempre tive vergonha de andar de chapéu, mas pareceu-me que ali seria adequado. Estava a ficar muito sol e tínhamos sido apurados para a Champions.

Assim de boné passei eu a minha tarde. Primeiro no adro da igreja enquanto a procissão se perfilava, entabulando fabulosas conversas com homens vestidos de santos. Depois novamente na praia, assisto ao desaguar de tão solene parada.

Foi das mais bonitas que já vi. Os figurantes desfilavam descomplexados e alegres, não com ar fúnebre como se faz na minha terra. Estavam a pagar promessas… e o acto de pagar o que se deve é sempre motivo de regozijo. Ser sério não é ser triste, por mais que o fardo do passado nos tente prender a essa absurda condição.

Ali todos me pareceram mais libertos. Ainda o jovem padre debitava o seu velho sermão e já muitos cirandavam pela praia, formando uma surreal mistura com os que ali tomavam o seu banho santo. De um lado São Bartolomeus, Tiagos, Antónios e Bentos, Senhoras das Dores pequeninas e outras mais velhas. Anjinhos e músicos da banda.

Do outro lado nós, com os nosssos pneus, pelos e cus, tatuagens, celulites e estrias.

Aquilo visto dentro de água é sublime. Nenhum Felini seria capaz de imaginar algo assim. Tão curiosa harmonia não caberia numa só cabeça.

Sou um dos que nunca sentiu a ‘paz de Fátima’, no entanto ali, fui invadido por algo que deve ser semelhante a isso. A doida serenidade que ali se vivia casou muito bem comigo, e por ali fiquei a boiar nos meus medos.

Os tais mergulhos ímpares também os dei, vá-se lá saber…

Ainda tenho medo de baratas e de ratos, e de outras coisas que eu cá sei.

Pode ser que me tenha livrado de um dos mais assustadores. E quem sabe um dia ainda volto… e seja mais um dos que esperam alguém de toalha na mão.

 
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