As sanções desportivas à Rússia, na sequência da investida militar em solo ucraniano, encontram paralelo nos anos 1990 na Jugoslávia, disse à Lusa o especialista em História do Desporto Ricardo Serrado, mas o impacto dependerá do desfecho do conflito.
A Jugoslávia foi liderada entre 1953 e 1980 pelo marechal Tito, e a sua morte deu origem a uma série de revoltas, conflitos e movimentos pela independência dos vários Estados dentro daquele bloco, num conflito complexo que se estendeu até ao início do século XXI, e mesmo para lá, com a declaração de independência do Kosovo em 2008, envolvendo comunidades étnicas de sérvios, bósnios e croatas, entre outros, e seis nações entretanto separadas e independentes.
Agora, após a invasão russa, o êxodo de refugiados ucranianos é o maior da Europa desde a II Guerra Mundial, ultrapassando mesmo os causados por todas as guerras na ex-Jugoslávia durante os anos 90 (2,4 milhões, segundo estimativas das organizações humanitárias).
Para Ricardo Serrado, há aqui um paralelo em que “o contexto é muito semelhante, com um desmantelamento de um império, de uma antiga República Federal, com vários estados, etnias, culturas, algumas muito distintas entre si”.
“Este não é um cenário completamente distinto do atual. […] As sanções são relativamente semelhantes. A partir de 1991, o que vai acontecer é que alguns organismos internacionais, desportivos e não desportivos, vão fazer sanções à antiga Jugoslávia, que encetou um conflito bélico contra a Bósnia e a Croácia”, nota.
Ao lado da NATO e da comunidade europeia, a UEFA sanciona a seleção jugoslava, que falha o Euro92, no qual a substitui a Dinamarca, que caminha diretamente até ao título, e a FIFA afasta-a do apuramento para o Mundial94.
“No que concerne às sanções desportivas, tiveram um efeito prático no que concerne à desmoralização que, de certa forma, acabou por acontecer num país que queria ver-se representado no contexto internacional e foi impedido de o fazer”, refere.
Os atletas dessas seleções desportivas jugoslavas, de resto, acabaram “por ficar do lado das sanções”, tendo em conta que tinham origens étnicas distintas, e este posicionamento “acabou por reforçar o poder e influência que criaram”.
“Houve um impacto claro e, sobretudo, na população em geral”, acrescenta.
A título de exemplo, em 2016 o antigo jogador Ljubinko Drulovic explicou ao jornal i como, em 1992, saiu do RAD Belgrado e acabou no Gil Vicente, mesmo com uma proposta do Estrela Vermelha, campeão europeu em 1991, um caminho idêntico ao percorrido por outros atletas.
“Os problemas começaram a surgir na Jugoslávia e quis sair e começar do zero. Então surgiu a hipótese do Gil Vicente”, contou, recordando uma história que depois viveu um ‘grande capítulo’ no FC Porto (1994-2001) e também no Benfica, antes de regressar a Belgrado em 2003, muito depois da resolução do conflito.
O peso das sanções agora aplicadas à Rússia, mas também à Bielorrússia, pela guerra contra a Ucrânia – ficou arredada de praticamente todas as competições e perdeu a organização de grandes eventos desportivos -, “vai depender muito do desfecho que este conflito irá ter, e isso é imprevisível”.
“Na Jugoslávia, teve efeito porque era um contexto que, embora complexo, teve uma intervenção da NATO, na altura, e da União Europeia. […] Tendo em conta o poderio militar da NATO contra o jugoslavo, e um país completamente fragmentado, considero que teve um desfecho previsível. Contra uma Rússia altamente poderosa militarmente, em que se poderia adivinhar um género de III Guerra Mundial, o poder de intervenção é muito mais reduzido”, analisa.
Sem Jugoslávia, “a ordem voltou rapidamente ao normal”, com Croácia, Macedónia do Norte, Bósnia e Herzegovina como Estados soberanos, mas este é “um caso muito mais complexo e difícil de prever”, também no desporto.
“Estas medidas servem sobretudo para desmoralizar o povo russo, as próprias instituições russas, em que se espera que as instituições desportivas, e não só, se virem contra o poder central e façam pressão para que as coisas possam ser alteradas. […] Enquanto Putin estiver no poder [na Rússia], tenho muitas dúvidas que sejam retiradas a breve trecho”, refere.
Para o historiador, quer a Rússia ganhe ou perca o conflito, o isolamento desportivo e não só do país manter-se-á pelo menos durante algum tempo, sobretudo tendo em conta sanções europeias “extremamente enérgicas e determinadas”.
Mesmo num cenário, diz, em que “o que a Rússia está a fazer é inqualificável e profundamente ilegítimo”, Ricardo Serrado alerta para uma perceção diferente que o povo russo possa ter, enquanto perspetiva histórica e cultural, da visão ocidental, considerando que fazia falta “outra sensibilidade e conhecimento” da cultura e do modelo societal russo para a resolução do conflito como um todo.
“Aquilo que a Rússia está a fazer, se fosse, eventualmente, outro país, provavelmente não seria tão visado. Também sabemos que o Mundial do Qatar de 2022 tem outros interesses, foi organizado também por outra direção que não esta, da FIFA”, lembra