Ponte Lima é o primeiro município do país a honrar os heróis da Guerra Colonial

Reportagem
Foto: DR

Seis mil e 300 limianos foram aprovados para a tropa por alturas da guerra colonial. Destes 1.500 combaterem em terras africanas e 53 morreram a lutar pela pátria. Junte-se as centenas que vieram com traumas e deficiências. Seis corpos ainda continuam longe das suas famílias.

Pelo menos, três homens que regressaram nunca trabalharam na vida pelas ‘mazelas’ causadas pela guerra.

“Algumas mentes deformadas querem chamar-lhes vítimas porque teriam sido obrigados a ir para a guerra” começa por explicar Mário Leitão, autor do livro “Heróis limianos da Guerra do Ultramar” que conta, para memória futura, a vida dos 53 conterrâneos que pereceram na guerra, mas “é incontornável que se trata de heróis”.

Mário Leitão não é meigo nas palavras quando fala dos heróis do Ultramar e do ‘silêncio’ à volta da questão: “as gentes mais modernas, desinformadas pelo regime que nos governa e deformados pela comunicação social manipuladora, nem sequer sabem da sua existência”.

E acrescenta: “estes jovens são heróis porque poderiam ter fugido à vida militar, como muitos outros fizeram, emigrando de forma clandestina, mas optaram por se incorporar. Assumiram os riscos que a vida militar acarreta”.

“Câmara ignora heróis”

Mário Leitão tem feito pedidos sucessivos à Câmara Municipal para que homenageie estes homens, seja através de bustos, seja através de nomes em ruas. Um apelo estendido às próprias Juntas de Freguesia de onde são originários os jovens soldados. Aliás, foi este contínuo esquecimento, e desafiado por um coronel amigo, que o também ex-combatente se começou a interessar pelo tema.

António Mário Leitão. Foto: DR

“Até 1996 também fui dos que ignorei o tema e passei ao lado dele”. A primeira homenagem pública feita no país aos soldados ultramarinos foi em Ponte de Lima, nesse ano, e “depois disso nada mais se fez como se aquilo chegasse”.

No Arquivo Militar começou a juntar histórias e depois junto das famílias começou a aprofundar a vida de cada um deles. “Ainda há traumas muito evidentes, depois destes anos todos. Há famílias que, literalmente, não falam do assunto; há outras que não fizeram o seu luto porque os corpos nunca regressaram e há quem fale com muita dificuldade mas só depois de várias aproximações e ganho de confiança”.

Para Mário Leitão, “há 53 famílias profundamente traumatizadas, e há quem depois da morte dos entes queridos nunca mais deixou de tomar medicamentos para a cabeça”. Houve “três casos que se manifestaram relutantes em se abrir porque ainda vivem o trauma do luto”.

Daí criticar o poder público: “não deve ser negado a estas famílias terem o nome dos seus familiares escrito na história do concelho”.

Seis corpos que não regressaram

A notícia do falecimento de um militar era obrigatoriamente feita através de um telegrama terra, geralmente um café, uma tasca ou mercearia. “Nesta guerra não houve a decência de anunciar o fatídico acontecimento através da presença de um militar graduado e devidamente fardado, especialmente instruído para enfrentar as emoções desencadeadas pelos familiares a quem era transmitida a notícia”, diz Mário leitão.

Dos limianos que morreram no Ultramar há seis corpos que nunca regressaram à terra natal.

“Estão sepultados em África, um na Guiné e cinco em Moçambique” e para o autor do livro, “o Estado português portou-se como um verdadeiro facínora. Tinham a obrigação de corrigir esta situação”.

Mário Leitão via mais longe: “se não conseguem tratar dos mortos como vão corrigir a ofensa grave à dignidade de centenas de milhares de cidadãos que não se furtaram ao dever militar e hoje vivem com traumas insanáveis da guerra?”.

Três histórias de heróis

João Vieira Melo (Ribeira)

Conhecido como o Regadas, João assentou praça em Espinho, concluiu a especialidade de auxiliar de enfermeiro, foi colocado em Coimbra e posteriormente em Lisboa de onde sairia para a Guiné.

Em finais de Outubro de 1965 chega a África integrado numa companhia que desenvolveu um intensa actividade em regiões guineenses. Poucos dias antes de completar quatro meses de missão é integrado num de dois grupos de combate.

Na área de Susana, o inimigo havia construído um forte acampamento com abrigos contra morteiros e aviação. Foram emboscados. Dias antes tinha escrito um aerograma à mãe.

‘Regadas’ foi atingido com gravidade, com uma bala nas costas, numa fase inicial do combate. Em vez de se proteger numa árvore tal como havia sido ordenado pelo comandante de secção não hesitou em arrastar-se para o local onde o fogo do inimigo era mais intenso, ao saber que naquela zona havia outros feridos que necessitavam de receber tratamento.

De arma na mão e sacola na outra, rastejou cerca de 50 metros até ‘à zona da morte’. Veio a ser atingido mortalmente no crânio quando prestava assistência aos seus camaradas.

João Alves Aguiar (Estorãos)

Rapaz alegre, extrovertido e sociável. Ingressou no Regimento em Braga tendo, depois, sido transferido para Torres Novas onde tirou a especialidade de atirador de artilharia. Embarcou para a Guiné em 1967 tendo como destino o destacamento de Cantacunda.

Abril de 1968. Faltavam três dias para completar um ano de missão em terras guineenses quando um ataque nocturno de guerrilheiros pôs termo à vida de João. Morreu com a arma na mão, à entrada do seu abrigo, disparando e resistindo ao avanço do inimigo. Foi o único que enfrentou os guerrilheiros.

Do ataque resultaram 11 militares presos pelo PAIGC, libertados mais tarde. Meia dúzia refugiou-se no mato, tendo sido recolhidos depois. João Aguiar foi o único cadáver, mutilado.

De armas na mão. A notícia chegou a Ponte de Lima por uma jovem madrinha de guerra.

António da Silva Capela (Cabaços)

O mais novo de cinco irmãos foi viver para Loures aos sete anos de idade. Promissor ajudante de electricista e exímio tocador de concertina, já tinha visto dois irmãos embarcar para Angola.

É chamado para a Guiné mas a mãe pede adiamento por não quer dois filhos, em simultâneo, no Ultramar. António optou por não adiar. Faz recruta em Lisboa e abala para África em Fevereiro de 1969.

É um dos integrantes da, tristemente célebre, operação ‘Ostra Amarga’. Após vários dias de acção em Badapal (com rebentamento de mina antipessoal e dois feridos), Biure (emboscada repelida pela reacção das tropas) e Capafa (dois feridos em rebentamento de mina anti pessoal), uma forte emboscada vitima António Capela.

Na coluna seguiam três jornalistas franceses, uma jornalista do jornal Paris-Match e dois jornalistas da televisão ‘ORTF’. A primeira haveria de ser retirada de helicóptero, em choque, com o que via.

A morte de António é, provavelmente, um dos episódios da Guerra Colonial mais conhecidos à escala mundial, divulgado pela televisão francesa. O filme da sua agonia apresenta imagens nostálgicas das lavadeiras do Rio Lima e é o expoente máximo da condição heróica dos soldados portugueses que morreram em África.

Foi a sua irmã, através de um telegrama, recebeu a notícia. Tem uma rua com o seu nome em Loures. “Em Ponte de Lima, ninguém quer saber”, finaliza Mário Leitão.

 
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