Passaram dois anos desde que a pandemia da covid-19 estreou-se a infetar os povos do mundo ocidental. A vida mudou. A perceção do medo alterou-se no quotidiano, as mudanças bruscas tornaram-se rotina, a gíria dos noticiários escreveu-se a trote de descobertas científicas inteligíveis para o senso comum, porém fulcrais para a saúde pública.
As medidas políticas que paralisaram projetos e hipotecaram vidas, como influenciaram a saúde mental de cada um de nós? Os ciclos mediáticos constantes e a polarização do debate sobre as vacinas, que consequências implicarão no contrato social entre a média, a ciência e a população? Onde mora o bem-estar psicológico do indivíduo, numa sociedade em “guerra” contra o “inimigo invisível”? Qual o papel do medo? Durante os dois últimos anos, qual foi o espaço que sobrou para discutir a saúde mental da população?
Zeferino Venade Ribeiro é psiquiatra há muitíssimos anos e diretor clínico na Casa de Saúde São João de Deus, em Barcelos, uma referencia médica para o tratamento de doentes psiquiátricos. O MINHO entrevistou o médico psiquiatra, para que explicasse aos leitores quais os efeitos da pandemia na saúde mental da população. A “pandemia silenciosa” já sufocava e corroía cada um de nós, muito antes do primeiro paciente infetado pelo SARS-CoV-2.
Qual a influência de dois anos de pandemia da covid-19 na saúde psicológica da população?
Já temos dados suficientes para saber que a pandemia gerou em muitas pessoas sentimentos de medo, tristeza, solidão e desamparo, para a maior parte das pessoas, estas vivências representarão um problema psicológico que será transitório, não chegando a desenvolver uma situação de doença. Todavia, uma realidade em constante mudança que já perdura há 2 anos implica uma exigência de adaptação que nos coloca permanentemente em alerta, podendo esgotar a nossa capacidade de resposta adequada. Por isso, algumas pessoas desenvolveram sintomas clínicos por exaustão emocional. Embora seja difícil prever com exatidão os efeitos a longo prazo, as contingências do “novo normal” e as dificuldades socioeconómicas de parte da população poderão gerar frustração, preocupação em relação ao futuro e mesmo depressão, a exemplo do que aconteceu aquando da crise financeira de há 12 anos.
Como avalia, de forma mais genérica e abrangente possível, a força anímica das pessoas?
Do meu ponto de observação parcial, enquanto médico psiquiatra, vejo alguns casos do que chamaria “neurose existencial”: há uma sensação de não estar no comando, de estar à mercê; e esse sentimento de impotência conduz a um certo baixar de braços e a um discurso de atribuir culpas aos outros e aos políticos. Há um compreensível estado de insatisfação exacerbada perante a impossibilidade de realizar muitas das coisas de que gostávamos e, o que é pior, um certo desacreditar no valor do esforço daquilo que se faz. Se tudo vale o mesmo, acabamos por ficar pouco seletivos e, por fim, manietados, incapazes de agir. Todavia, geralmente, isto é fora do consultório, diria que as pessoas encontram a força necessária para aliviar as emoções negativas causadas pela situação pandémica, vivem da melhor forma o presente e têm esperança no futuro.
A comunidade psiquiátrica denota algum aumento na frequência de patologias do foro mental ao longo dos dois últimos anos?
Sim, há umas quantas meta-análises que mostram que, há medida que o coronavírus alastra, aumentam os problemas de saúde física e concomitantemente os problemas de saúde mental, nomeadamente quadros de depressão e ansiedade. Sem exagero, já houve quem lhe chamasse, a este aumento da incidência das patologias do foro mental, a pandemia silenciosa.
“Estávamos borrados de medo, mas iludimo-nos com a enganosa eficácia de comprarmos o último frasco de álcool gel antes do nosso vizinho”
Convém discriminar os novos casos de patologia, que resultam do cenário de desorganização da vida diária, do agravamento de condições clínicas que resultam da menor falta de atenção aos pacientes já anteriormente identificados. Em relação a estes últimos, merecem maior atenção, os doentes com doenças mentais mais severas e persistentes, até porque os serviços que habitualmente os atendem estão, como outras áreas da medicina, sujeitos a muito maior pressão.
Um confinamento no sentido estrito de 15 dias fechado em casa tem consequências psicológicas para o indivíduo?
Os períodos de isolamento ou, mais dramático, os períodos mais prolongados de confinamento foram uma oportunidade excecional de nos olharmos ao espelho, mas, a partir da minha prática, as pessoas viveram esses períodos de formas muito distintas: para uns foi uma ameaça pelo escrutínio da sua intimidade, em contrapartida, para outros foi uma oportunidade de intensificar relações; para uns representou uma mudança negativa pela necessária mudança das rotinas, enquanto para outros o momento de crise foi uma ocasião favorável para refletir e alicerçar projetos de vida. Em muitas áreas, a mudança tornou-se uma tendência e os períodos de confinamento são apenas mais um emblema dessa “trend”.
Qual o papel do medo nesta pandemia?
O medo é um importante estado de alerta para a nossa sobrevivência e pode conduzir-nos a medidas de proteção adequadas no contexto pandémico, usar máscara, por exemplo, ou distanciarmo-nos fisicamente dos outros. O medo pode ser desajustado se nos levar a esconder a cabeça debaixo da areia ou se o iludirmos com falsas sensações de segurança, como aconteceu em fases iniciais da pandemia, quando muitas pessoas tentaram criar uma espécie de abrigo subterrâneo de sobrevivência. Açambarcar papel higiénico, por exemplo, do ponto de vista simbólico, mostra bem que estávamos borrados de medo, mas iludimo-nos com a enganosa eficácia de comprarmos o último frasco de álcool gel antes do nosso vizinho.
Como evoluiu a pressão social nas decisões e na vida do indivíduo, desde o primeiro caso da covid-19?
Parece-me que a pressão social variou na razão inversa da perceção do risco. Lembro-me de, no início da pandemia, ficar emocionado ao ver imagens na televisão do primeiro português com COVID-19 que se encontrava a bordo de um cruzeiro atracado no Japão. Era uma pessoa com nome, com rosto e família, entrevistada na televisão. Aquele homem em sofrimento, infetado com um vírus desconhecido, despertava-nos a empatia, porque poderíamos ser nós naquele lugar. Depois, observámos a situação de catástrofe em Itália e tudo aquilo parecia-nos demasiado próximo. Os casos eram todos proeminentes, por isso ficamos em casa, aceitámos sem protestar as restrições impostas e aplaudíamos à varanda os profissionais de saúde. Hoje, a situação é muito diferente: tivemos mais de um milhão de novos casos a nível mundial e mais de 30 mil casos em Portugal. Estes números, todavia impressionam-nos menos, porque os outros deixaram de ter um rosto, de ser uma história, para serem uma cifra.
“Não basta fornecer informação às pessoas, é importante que ela seja emocionalmente significativa para podermos ver as pessoas que se escondem por detrás das estatísticas”
Perante este “tsunami” dos novos casos, apesar do aumento incessante das mortes provocadas pela doença, as pessoas ficam entorpecidas, como se isso não lhes dissesse respeito. Acredito que o desgaste provocado pelas mudanças no estilo de vida e alguma fadiga pandémica provocada por excesso de informação, também desempenhem um papel importante, é como se houvesse uma dissociação entre a evidência científica e a perceção do risco, desencadeando até espantosos movimentos negacionistas de uma doença contagiosa. Podemos concluir que não basta fornecer informação às pessoas, é importante que ela seja emocionalmente significativa para podermos ver as pessoas que se escondem por detrás das estatísticas. Só desse modo podemos contar com um comportamento altruísta, para lá da perceção individual do risco, como resultado da pressão social para questões práticas como usar máscara, cumprir regras de distanciamento físico, realizar testes de despiste ou ser vacinado.
Enquanto médico, é favorável à vacinação das crianças?
Não sou perito por isso não consigo avaliar, sob o estrito ponto de vista da saúde pública — sendo o que está em causa —, se é equilibrado o risco versus o benefício. Enquanto médico, estou naturalmente do lado das orientações das autoridades de saúde, embora reconheça que vivemos um tempo de mudanças demasiado rápidas nas teses ditas científicas, o que nos pode retirar a todos, alguma confiança. Lembro, a título de exemplo, as contraindicações iniciais acerca da recomendação de usar máscara, as alterações dos limites de idade aconselhados para a vacina da AstraZeneca, ou a variabilidade dos períodos de isolamento. A pergunta é armadilhada, quando me perguntas “enquanto médico”, como se isso remetesse para a uma opinião mais rigorosa. Temos de distinguir entre aquilo que são decisões políticas guiadas pela conjuntura socioeconómica e aquilo que é efetivamente ciência. Esta subtileza torna estas perguntas de resposta difícil… Nestes casos, será melhor recorrermos ao pensamento dos investigadores. Hoje mesmo, o Professor Henrique Barros, epidemiologista e defensor da vacinação dos mais jovens, chamava à atenção para a vacinação não como uma medida individual, mas como fazendo parte de um contrato social.
Que recomendações poderá entregar aos leitores, para tentarem encontrar ou manter um equilíbrio psicológico e emocional durante a sua vida?
Devemos ser humildes quando damos dicas aos outros sem conhecer a sua realidade psíquica, os seus problemas e o mundo em que vivem, mas de uma forma muito genérica, um pouco inspirado pela minha experiência clínica e outro tanto pela minha experiência de vida, daria 3 recomendações: colocar as dificuldades em perspetiva, sendo um modo de atualizarmos a nossa resiliência; aceitar que às vezes, é normal sentirmo-nos mal; mantermos o foco no presente e olharmos também para aquilo que de positivo resulta dos momentos de crise.
“Confrontámo-nos, talvez mais do que nunca, com a relevância da solidariedade como um valor essencial para a nossa sobrevivência”
Dou alguns exemplos no contexto da crise pandémica: ficaram paradoxalmente fortalecidos os laços de proximidade, muito à custa do aumento da nossa proficiência digital; percebemos a importância de ter decisores políticos lúcidos e a relevância do sistema nacional de saúde e houve um crescimento paralelo da sensibilidade às doenças epidémicas e às alterações climáticas. Confrontámo-nos, talvez mais do que nunca, com a relevância da solidariedade como um valor essencial para a nossa sobrevivência.
É importante desligar da média? E ler um livro?
Lembro-me a propósito do filósofo francês Montaigne que dizia que o homem não é tão ferido por aquilo que acontece e sim por sua opinião sobre o que acontece. Tem sido dito muitas vezes, mas continua a ser válido, por isso vale a pena repetir: a informação é crucial, mas deveremos ser criteriosos na procura das fontes. Sem dúvida que desligarmo-nos da informação mais superficial, dos comentários de alguns “tudólogos” da televisão e das teorias da conspiração das redes sociais é, desde há muito, uma atitude inteligente. Ler um bom livro é, sem quaisquer dúvidas, uma excelente alternativa para construirmos o nosso próprio polígrafo.