ARTIGO DE MANUEL PIMENTA
Todos temos casos com cidades. O meu com Guimarães começou cedo. Foi num passeio da escola, naquela mágica primeira vez em que fui com amigos correr o mundo.
Mas que gloriosa aventura aquela. Éramos doidos e praticamente livres. Levávamos mantimentos, cigarros roubados em casa, até algum dinheiro para malgastar. Living la vida loca durante um dia, dos tais que ficam para sempre.
Ainda recordo a paciência do motorista. Sereno ao leme daquela nau dos infernos, pestilenta de vomitado. Felizmente somos pátria de navegadores. Vendo bem, os mares até nem teriam tantos perigos como as nossas estradas da época. Navegar por entre tratores, camiões, carros de bois e bêbados de motorizada, não era tarefa para um qualquer timoneiro. Sem contar com aqueles carros, que saíam das garagens de traseira diretamente para a nacional.
Vasco da Gama não deve ter tido missão mais difícil, nem sequer pior tripulação. Duvido que no seu convés, houvesse tanto arruaceiro como na nossa guarnição:
– Senhor condutor!!! Ponha o pé no acelerador!!! Se bater, não faz mal!!! Vamos todos para o hospitaaaaal!!
Eram assim os ‘passeios’ infantis nos anos oitenta. Tempos de trabalho árduo para a Nossa Senhora de Fátima. Chegarmos foi apenas mais um milagre. Visitamos o castelo, o Paço dos Duques e depois deixaram-nos à solta, como sempre. Era nessas alturas que mais aprendíamos a crescer.
Lembro-me de ter comprado um pequeno Afonso Henriques de plástico. Gostei tanto dele… mas só até reparar nos gelados dos outros. Nenhum dos meus amigos, tinha sido capaz de resistir à
tentação do efémero. Vivia rodeado de sábios sem saber… que bom ter-me apercebido a tempo.
Só voltei anos mais tarde, para ver o meu Sporting. Dessa vez não houve santa que me valesse. Perdemos feio, num jogo em que até começámos a marcar. Tudo graças a um tal de N’Kama, funesto zairense, meu conhecido dos cromos. Em dois remates que fez, num deles acerta-me em cheio e quase me arranca a cabeça ao corpo. Com o outro provocou-me uma semana de amargura.
Não se adivinhava fácil, a minha relação com Guimarães. Perdi nas três primeiras vezes que fui à bola. Logo naqueles anos irrepetiveis em que nos apercebemos o quanto fazemos parte de
uma tribo. Domingos de sonho estragados, por algo aparentemente alheio à nossa existência. Há amores incontroláveis, capazes de resistir à derrota. Quem mo ensinou foi o Vitória.
Um dia fui apedrejado à saída do estádio. Assim mesmo… como um mouro qualquer. Duvido que (o nosso!) Afonso Henriques, gostasse de ver um cidadão (nado e criado nas margens do Lima!) a ser assim tão maltratado a modos de mau perder. Vá lá que não me acertaram, como o N’Kama. Dessa vez nem lhes guardei rancor nenhum. Sei bem o que é ser de um clube romântico… viver abaixo das expectativas pode dar azo a alguns excessos.
Perdendo ou ganhando, a verdade é que sempre lhes tive uma certa inveja. Quanto não vale o coração estar a morar na própria terra. Algo capaz de os unir a todos, pais, filhos, netos… e ir à bola com os amigos até ficarem velhinhos. Quem assim vive, acaba sempre por sentir mais. Isso é melhor do que ganhar.
Anos depois, comecei a namorar por cá. Mas ela era de Braga, por isso não sei se conta. Só vem à história, por ter sido nessa altura que conheci a cidade mais a fundo. Refiro-me às ruas,
restaurantes e associações. Nada me surpreendeu. Sabia há muito que esta cidade tinha o dom de fervilhar. Em Guimarães só não se discute o indiscutível, de resto dá-me a impressão de valer tudo. Todos me parecem participativos, nos cafés, nos palcos, nas tradições. Homens e mulheres, novos e velhos, ricos e pobres, ninguém se inibe de dar o seu contributo, conforme as suas ideias, crenças e convicções. É assim que se faz uma grande cidade.
Será talvez nas Nicolinas, que a identidade vimaranense atinge o seu esplendor.
Às Maçãzinhas nunca tinha vindo. De todas as celebrações da quadra, apenas tinha estado no Pinheiro um par de vezes. Dariam um belo rosário, não fosse o texto ir já longo de memórias.
Este ano, finalmente, consegui vir em dia de São Nicolau. É nessa data que decorre, a mais sentimental celebração das que tenho conhecimento. Não haverá no mundo, nada tão amoroso como um grupo de rapazes endiabrados pela idade, a tentar com uma lança (fabricada por eles), entregar uma maçã a uma das moças que estão à janela.
O ritual vai resistindo ao passar dos tempos. E, como em todas as Nicolinas, é dada a responsabilidade aos mais novos de organizar aquilo tudo. É uma boa forma de os vincular, desde
cedo, à comunidade a que pertencem. Que pena não haver muitas assim espalhadas país fora.
Por ali fiquei sentado, assistindo à cerimónia com os meus olhos de fora. Em abono da verdade, devo dizer que tudo me pareceu um pouco abandalhado. Uma tradição tão original, merecia a meu ver um pouco mais de critério. Percebo que não seja fácil de outra forma. Os devaneios dos catraios nunca serão controláveis. E ainda bem… de tão sadios deviam ser obrigatórios.
Alguns rapazes deram maçãs a umas poucas. E elas, por sua vez, aceitaram-nas de uns quantos. A mocidade de agora anda mais à descoberta… e Guimarães sempre deu mostras de acompanhar a evolução dos tempos. Não me admiraria, se um dia à janela, estivessem alguns rapazes à espera do seu pretendente. Ou então, quem sabe, algumas moças de lança na mão, tentando que a sua amada recolha a maçã que levam na ponta.
Será como quiserem, nada tenho a ver com isso. Vou daqui pra minha terra com a mesma certeza de sempre, muito tem de aprender o país com a sua cidade berço.