Inês Guimarães é Mathgurl, uma personagem que, a brincar com matemática, já alcançou mais de 100 mil seguidores no YouTube. O projeto arrancou no 12º ano, hoje Inês tem 23 anos e é licenciada e mestrada, em matemática está claro, mas confessa que foi por uma crise de autoestima matemática que o projeto do canal arrancou. Falando com ela, percebe-se muito rapidamente que reúne duas coisas raras num matemático, conhecimento sobre a disciplina (isso todos devem ter) e uma capacidade de comunicação muito desenvolvida. Se já viu os vídeos e acha que há ali um toque profissional, isso é só porque ela é mesmo muito boa, porque é tudo feito de forma amadora, embora com muita paixão.
Como é que começou a tua relação “íntima” com a matemática?
Eu sempre gostei de matemática, mas digamos que eu só acordei para o mundo da matemática quando estava no 7º ano. Tive um professor, o José Freitas, que era muito exigente. Dizia coisas do género, ‘tu não sabes nada de matemática’. Não nos chamava propriamente burros, mas estava sempre a picar e eu vinha do 6º ano com cinco a matemática, mas houve uma aula em que ele mandou fazer uns exercícios e eu não fui capaz de resolver ou estava a fazê-los mal. O professor José Freitas mandou-me escrever no caderno, para mostrar aos meus pais em casa, ‘a cada dia que passa eu apercebo-me que ainda não sei nada de matemática’.
Isso poderia ter sido o começo de uma má relação com a matemática?
Mas não, porque, por outro lado, esse professor também se gabava muito dos excelentes alunos que tinha tido e circulavam histórias de alguns que tinham ido para a NASA. Nunca cheguei a perceber se isso era apenas um mito! Mas o facto é que o objetivo daquele professor era fabricar excelentes alunos. É uma abordagem peculiar, porque normalmente os professores têm a preocupação que todos os alunos cheguem à média, para isso focam-se nos alunos que têm mais dificuldades. No caso do professor José Freitas, a missão dele era pegar nos alunos bons e fazer deles excelentes.
Foi a alavanca para começares?
Comigo a estratégia funcionou. Ele acabou por ser o meu ídolo e uma grande inspiração para mim. Inicialmente eu tinha um medo de morrer dele. Era uma figura muito intimidante, mas acabou por mudar toda a minha vida. Senti-me desafiada e encontrei uma vontade em mim, um sinal de que era capaz.
E o que é que na prática mudou?
A partir daí eu comecei a trabalhar muito na matemática. No ano seguinte comecei a investir numa competição que são as Olimpíadas da Matemática (OM). A competição de matemática, ao nível do ensino básico e secundário, com mais visibilidade no país.
Qual era o objetivo?
Meti na cabeça que queria chegar a uma final das OM. Isso permitiu-me contactar com o professor João Oliveira, que era excelente. Com ele comecei a explorar problemas mais avançados. Com ele comecei a discutir alguns problemas de matemática diferentes daqueles que são ensinados na escola.
Isso fazia parte da tua preparação para as OM?
Sim, porque nas OM não é preciso ter conhecimentos por aí além, é preciso ter criatividade.
Como é que a criatividade se relaciona com a matemática?
São desafios em que tens que pensar “fora da caixa”. Porque os exercícios escolares que são propostos aos alunos, implicam uma resolução mecânica, em que eles apenas são chamados a aplicar uma técnica que previamente lhes foi ensinada. Nas OM não é isso que se pede.
Na maior parte dos casos os alunos nem sequer chegam a saber para que servem grande parte das matérias que estudam?
Quando se fala de matemática, é preciso cuidado. Não vale a pena mentir, a maior parte da matemática que as pessoas aprendem na escola, nunca a vão usar na vida. Depois de passados os anos da escola, a grande maioria das pessoas nunca mais vai calcular um logaritmo, uma derivada ou uma primitiva. Agora, o objetivo da matemática é desenvolver o raciocínio lógico e o poder de abstração. Desenvolvendo as capacidades matemáticas, as pessoas podem resolver uma infinidade de problemas, porque raciocinam melhor a um nível abstrato. A abstração permite-te resolver problemas que parecem muito diferentes, mas que se reduzem à mesma coisa. Isso a matemática oferece, uma caixa de ferramentas para resolver problemas.
É uma forma de simplificar o mundo para o poder operacionalizar?
Sim exato. Mas há uma falta de motivação dos alunos, que nunca chegam a compreender isto. Nunca lhes dizem porque é que estão a aprender ‘isto ou aquilo’. Os alunos devem apaixonar-se pela pergunta, porque se estiverem apaixonados pela pergunta vão querer conhecer os passos para a resposta. Frequentemente entra-se a todo o gás na resposta. Lá está, nas OM tens que imaginar técnicas para resolver problemas, não se trata de aplicar uma fórmula e já está.
Tu querias ir a uma final das OM e como é que aconteceu? Tiveste sucesso?
Eu meti na cabeça que queria chegar à final das OM quando estava no final do 8º ano, não aconteceu. No 9º ano eu não cheguei à final, no 10º ano eu não cheguei à final, por esta altura a minha autoestima matemática já estava muito baixa. Eu passava os verões a resolver problemas, mas provavelmente não estava a ter a abordagem certa. No 11º ano, fui na desportiva, sem grandes objetivos, para minha surpresa, foi nesse ano que cheguei à final, embora não tenha conquistado qualquer medalha. No 12º ano, voltei a ir à final e aí sim obtive uma medalha de prata. Foi uma jornada que acabou por terminar bem.
Também és assim insistente em outras coisas na vida?
Eu interesso-me por muito poucas coisas, na maior parte do tempo vivo dentro da minha cabeça e estou completamente a leste do que se passa no mundo. Agora, quando eu me interesso por alguma coisa, tento mesmo dar o meu melhor e ser rigorosa naquilo que faço.
Além de seres boa aluna a matemática, também eras boa aluna nas outras disciplinas. Isso alguma vez te criou problemas quando se tratou de escolher o que irias estudar na universidade ou sempre soubeste que ias para matemática?
A única disciplina que eu não gostava era biologia. Fora isso, gostava de tudo e tinha boas notas. Gostava de Português, de línguas, muito de inglês, filosofia. Talvez o facto de eu também gostar de comunicação também tenha ajudado nisso. Mas nunca tive dúvidas, eu desde cedo sabia que queria ir para matemática. Ainda houve um momento em que oscilei entre matemática ou ciências da computação, mas durou pouco. A matemática é um mundo que te permite sonhar, um mundo de fantasia, sem nenhuma ligação ao real, ao contrário, por exemplo, da física.
E que matemática é que foste estudar?
Matemática pura, diferente da aplicada, em que usas ferramentas matemáticas para resolver problemas que surgem em situações reais. A matemática pura anda mais próxima da arte que da ciência, em que se exploram universos que só têm existência matemática.
E em termos profissionais, agora que a licenciatura e o mestrado firam para trás?
Bom, não me vejo com um emprego convencional. Vou-me metendo neste projeto e depois naquele e no outro e vou andando. Ainda estou a descobrir.
Gostarias de ensinar?
Gosto, mas não me vejo a ser professora do ensino secundário, nem do ensino superior. Além de que não tenho qualificação, no primeiro caso tinha que fazer um mestrado em ensino, no segundo teria que fazer um doutoramento e ter toda aquela carreira académica. Eu gosto de ensinar à minha maneira, não em ambientes formais. Neste momento eu sou embaixadora de uma associação para o ensino da computação nas escolas, a ENSICO, que pretende ver implementada uma disciplina de computação em todos os anos do ensino, do 1º ao 12º. Neste momento é isso que me apaixona.
O projeto já está no terreno ou ainda é uma ideia?
Já está numa fase piloto, estamos em algumas escolas do país e eu estou a dar aulas de computação a uma turma do 9º ano.
O que é que lhes ensinas, linguagens de programação?
Não propriamente. Aquilo que diferencia este projeto é que o que se pretende aqui é mostrar o corpo de conhecimento por trás do funcionamento dos computadores. Na maior parte das aulas não usamos computadores. Queremos desenvolver nos alunos o pensamento computacional, para que eles compreendam as tecnologias que utilizam no quotidiano. Programação já são técnicas e nós o que abordamos, nesta disciplina, é a parte científica.
E isso é mesmo preciso, compreender a tecnologia? Tu hoje não serias capaz de fazer uma fogueira com duas pedrinhas?
Sim sem dúvida, não precisas de conhecer tudo o que está por trás de toda a tecnologia que usas. Mas, se na escola aprendes todos aqueles sistemas de como funciona a mitocôndria, todos os processos bioquímicos do teu organismo, por que raio é que não ensinamos como é que funciona algo que usamos todos os dias constantemente?
Uma das coisas que explico aos meus alunos é como é que funcionam os códigos QR. Os alunos interessam-se por isto porque faz parte da vida.
A uma certa altura nesse teu percurso decidiste criar um canal no YouTube, para divulgar matemática?
Sempre gostei muito de comunicar e, ao longo do ensino básico iam surgindo concursos em que tínhamos que fazer um vídeo, outras vezes era mesmo em trabalhos da escola. Desde cedo comecei a aderir a essas oportunidades. Juntamente com umas amigas, no 9º ano, ganhei um concurso chamado “Saber porque”. Trata-se de fazer vídeos a explicar temas de ciência. No início do 12º ano, decidi criar o canal no YouTube por dois motivos: porque a minha falta de autoestima continuava, por todas as vezes que tentei e não consegui ir à final das OM; por outro lado eu achava que não seria um daqueles matemáticos teóricos que ficam num gabinete a resolver problemas, mas ao mesmo tempo percebi que nesta jornada tinha aprendido tantas coisas tão interessantes e que podia partilhar com outras pessoas.
Foi uma decisão solitária ou alguém deu um empurrãozinho?
A decisão de criar o canal no Youtube foi minha, mas o professor de que falei, o João Oliveira, desde cedo reconheceu em mim uma capacidade para a divulgação.
E a parte técnica, tens ajuda ou fazes tudo sozinha?
A sensação que as pessoas têm é que aquilo é tudo muito simples, mas na verdade é muito trabalhoso, eu faço um guião rigoroso para cada vídeo. Na verdade, até prefiro que as pessoas pensem que é tudo muito simples, porque se pensarem que há muita preparação pode perder a magia (riso). Sou eu que faço tudo sozinha e aprendi sozinha, a ver filmes de outros youtubers e seguir tutoriais.
E a linguagem, tu és assim como nos vídeos ou é uma persona?
Aqueles seguidores que dizem que gostariam muito de me conhecer ficariam desiludidos (mais risos). Porque quando vemos vídeos críamos uma imagem mental de como a pessoa é, mas é óbvio que eu não posso ter aquela energia e aquela piada 24 horas por dia, sete dias por semana. É uma personagem que eu ativo quando filmo. Não é uma personagem desligada de quem eu sou, simplesmente tem as minhas vertentes mais extrovertidas acentuadas.
É uma caricatura?
Sim, é uma caricatura minha e tento colocar ali um pouco de humor.
Recentemente atingiste 100 mil seguidores. Isso já é significativo em termos de retorno financeiro?
Eu deixei de monetizar os meus vídeos, embora numa fase anterior o tenha feito. De qualquer forma, ninguém fica rico a receber do Youtube.
Mas porque é que deixaste de monetizar os teus vídeos?
Porque quero poupar os meus seguidores a terem que assistir a anúncios, entram logo no vídeo. Eu própria estou farta de publicidade. Por outro lado, estou a perder dinheiro, mas não estou a perder assim tanto dinheiro.
Já te passou pela cabeça fazer do canal do Youtube uma ocupação profissional?
Não, sempre vi aquilo como um hobby. Na verdade, para ganhar dinheiro tens que estar ligada a marcas, não podes depender do advertisement que o Youtube coloca. Eu já fiz isso, mas, nos últimos tempos tenho estado mais desligada do canal, só faço vídeos no verão para relaxar. Isso implicaria fazer vídeos semanais, eu gosto de fazer vídeos quando me dá prazer.
Onde é que vais estar daqui a dez anos?
Não faço a mínima ideia. Nem sei onde vou estar daqui a um ano. Trata-se de explorar, ver o que há por aí por fazer.