A Feira Universal de Cerdal

ARTIGO DE MANUEL PIMENTA

Cheguei à feira bem cedinho, como sempre. Foi assim que aprendi a ir com os meus consultores para esse tipo de matérias.
– A partir de uma certa hora já está tudo escolhido e remexido! Quando os ouço lembro-me sempre das matinés de domingo, nos tempos em que as noites se viviam durante a tarde. Depois dos slows era escusado tentar… os deuses já tinham naipado tudo o que ali havia para naipar. Mais valia ir andar à porrada ou dar uns mergulhos no rio. Era importante libertar toda aquela ‘maldade’ juvenil, que nesse dia não se tinha transformado em amor. Segundo os tais sábios por quem me regulo, nas feiras a história é um pouco parecida.

Feiro muito poucas vezes, com grande pena minha.
É que para mim feirar costuma ser do outro lado. De quinze em quinze dias, a minha farmácia faz parte integrante de uma das mais conceituadas feiras do nosso Minho.
Conheço os feirantes como meus fregueses. E aprendo com eles em poucos minutos, aquilo que nunca aprendi em monocórdicas horas em ações de formação. Quem vende sabe o que é estar do outro lado. São gente de trato fácil. Confiam. Escutam. Percebem. Não engonham. E são dos que ainda pagam ao vivo e a cores… ali com elas batidas do avental para o balcão.
Os feirantes são os mais fiéis zeladores das antigas artes do comércio. Não querem saber do capitalismo para nada… e lá nisso somos compinchas. Sentimos a nossa ‘tenda’ como parte da nossa identidade. Se por algum motivo alguém quiser reclamar de alguma coisa, sabe sempre onde nos pode encontrar… nem que seja preciso esperar pela feira seguinte.
Damos a cara ao manifesto. Não fazemos parte desta ‘megalomania triunfante’ que pretende avançar para um mundo sem rostos.

Sempre que posso vou à feira de Cerdal. Em Dia de Todos os Santos,’por supuesto’. Para quem não sabe, Cerdal fica na raia, ao pé da fronteira de Tui. Daí os nossos manos galegos aparecerem aos magotes, aproveitando o feriado em comum.

Mas antes deles cheguei eu, pelos motivos já explicados. Eu e os papa-reformas… mais meia dúzia de carros dos que aparentam deitar fumo.
Alguns dos meus companheiros de aurora começaram a agasalhar-se bem cedo, ignorando propositadamente o facto deste ano o frio não ter ido à feira. Há quem precise de ‘molhar a palavra’ momentos antes de entrar em cena… e copo dá sempre um certo jeito para desemperrar a língua.
Os mais apalavrados costumam ser os ciganos. Nas feiras jogam em casa como em nenhum outro lugar. Sentem-se (e são) aceites por todos. Foi nestes arraiais itinerantes que conseguiram erguer a sua espécie de Pátria.
É verdade que alguns ciganos fazem disparates e dos grandes… mas na hora de enfiar tudo no mesmo saco, convém não esquecer estes feirantes. Há ciganos que se levantam ainda noite, para erguerem a sua ‘leira’ debaixo de todo o tipo de intempéries… e ainda têm que levar com os preconceitos acerca disto e daquilo. Feliz de quem não sabe o que é passar pelo mesmo.

Nas feiras todos se entendem, felizmente. No fundo até somos parecidos… povos ciganos, lusitanos e galegos têm de andar eternamente a fazer pela vida, seja como ou onde for.
Em Cerdal aparecem já mais raças, também a tentar ganhar o deles: asiáticos, magrebinos, sub-sarianos e sul-americanos, tudo a fazer pelo mesmo… e estes bem longe do seu ‘cerquido’.
Cria-se ali uma sociedade das nações bem peculiar. Vendedores universais lutam de forma saudável pela nossa atenção e graveto.

Eu sou um mau comprador porque não gosto de comprar.
Considero escolher coisas uma autentica chatice… e o pior é depois ter de as carregar. Só que a partir de uma certa hora a gente era tanta, que comecei a sentir-me estranho de mãos vazias. Um tipo ali sozinho (a olhar de canto para tudo) ganha um certo ar de carteirista, por isso fui saber dos transmontanos com a ideia de comprar castanhas.

Acabei por trazer nozes, castanhas e alguns figos secos… para a nota de dez ficar completa. A vontade não era muita, mas agora penso até que paguei pouco por tão prazerosos serões com sabor a outono.
Há seis dias que andava a tentar acabar este texto… Não é fácil partir nozes e escrever ao mesmo tempo.

Feira de Cerdal. Foto: Manuel Pimenta

 
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