Dentro da comunidade LGBTQIAP+, um dos grupos que ainda causa um desconhecimento na população é o da letra T, que significa transgéneros. Tanto que, apenas em 2018, a Organização Mundial de Saúde deixou de tratar como um distúrbio mental. Alguns investigadores apontam que as pessoas trans representam 1% da população, e também estão em Braga, onde buscam espaço, respeito e o direito de sonhar.
Este domingo é o Dia Internacional da Memória Transgénero, uma lembrança aos que faleceram vítimas de violência transfóbica ou preconceituosa. Entre outubro de 2021 e setembro de 2022, 327 pessoas trans foram assassinadas no mundo, segundo números do Trans Murder Monitoring (TMM).
A maioria da idade das vítimas está entre os 31 e os 40, isto para além das altas taxas de suicídio.
Embora sem base científica, a comunidade LGBTQIAP+ estima que a esperança de vida de uma pessoa trans é de cerca de 35 anos, o que influencia nas aspirações futuras.
“Boa pergunta… É difícil imaginar-me daqui a algum tempo. Gosto de focar no agora, até porque a esperança de vida de uma pessoa trans é bastante baixa”, afirmou Lucas Raúl, homem trans de 25 anos residente em Braga, a O MINHO.
“As pessoas trans são bastante discriminadas e muitas já não aguentam. A única solução que vem é a morte. E há muitos homicídios causados pela discriminação, então é difícil ver um futuro longo”, explica Lucas, que controla o perfil TRANSformarPortugal, no Instagram.
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Lucas tem sonhos e aspirações. Trabalhador na área da restauração, quer estudar Psicologia e ajudar outras pessoas, não necessariamente em situações semelhantes à sua, mas sim “pelo fascínio pela mente humana” e porque quer “auxiliar minorias”.
“É frustrante ver que as pessoas precisam de ajuda e não existe apoio. Eu também já estive em posições difíceis e não quero que ninguém sinta que não tem lugar no mundo, porque toda a gente tem lugar”, refletiu.
Já trabalhou num estúdio de fotografia, considera-se uma pessoa criativa e também quer ter a sua “cena” na área. Mas um dos grandes sonhos que tem pode parecer simples, só que para uma pessoa trans é gigante.
“Sinto que é bastante importante as pessoas conhecerem as palavras ‘trans’ e ‘cis’, muitas pessoas usam a palavra ‘normal’ em vez de ‘cis’.
Pessoas cisgénero são aquelas que se identificam com o género que lhes foi atribuído à nascença. Enquanto a pessoa trans se reconhece como pertencente ao sexo oposto.
“Devemos normalizar pessoas trans, é importante as pessoas perceberem o que são pessoas trans e cis, se está a dizer que uma pessoa ‘cis’ é normal, parte do pressuposto que uma pessoa trans não é normal”, disse.
“O meu pai só estava lá para marcar presença”
Lucas não nasceu em Braga, mas em Lisboa. E aos 11 foi para Leiria. O jovem conta que vem de uma família com afinidade pelo ideário de extrema-direita e que sentia muita pressão para “ser de uma certa forma”, seguir ensinamentos que nunca concordou.
A relação com o pai era ainda mais difícil. Lucas lembra, por exemplo, que o progenitor já foi preso por violência doméstica e defendia “coisas como pessoas negras são inferiores”.
“Eu sempre me revoltei quando ele dizia isso, e também por causa da violência, que nunca consegui entender. E eu tento perceber as perspetivas das pessoas, mas quando sei que isto está a magoar alguém, não consigo entender como aquilo é ‘ok’. Está a prejudicar a vida de alguém, então não é ‘ok’. Sempre me revoltei. Também vem daí eu ser tão afastado da família. Nunca aceitei estes valores, daí o meu isolamento em relação a eles”, explica Lucas.
O jovem percebe que o seu progenitor estava lá, mas não o considerou um pai, pois só “estava lá para marcar presença”.
E lembra como foi quando ‘saiu do armário’.
“O meu pai era a pessoa mais extremista da família, por isso tinha um bocado de receio de como iria reagir quando soubesse que eu iria fazer a transição. Contei há cerca de um ano. Ele disse que não entendia, mas respeitava. O que até já é um passo para uma pessoa com ideias extremistas. Mas não me trata pelos nomes e pronomes [atuais]”, disse, lembrando ainda a reação de um dos irmãos.
“O meu irmão mais novo ficou super feliz e disse que ganhou um irmão, foi muito bom de ouvir”.
Na infância, Lucas conta que era uma pessoa bastante isolada, não tinha amigos e não conseguia identificar-se com as pessoas à sua volta. Recorda que pedia à mãe para o tratar por nomes masculinos que inventava – e que na altura via como brincadeira de criança. Gostava ainda de usar brinquedos com estereótipos de rapazes, como carros e bonecos.
Um sítio que se sentia bem era a praticar futebol.
“Eu gostava de jogar à bola, era o único sítio em que me sentia bem, onde não me sentia julgado, estava focado naquilo e o resto não interessava. Eu era lido como uma rapariga, ouvia comentários de que raparigas não jogavam à bola, não fazem desporto. Mas passavam ao lado. Gostava tanto de jogar, que não queria saber o que eles tinham a dizer”, lembra.
Lucas garante que “jogava bem”, mas não acompanha os jogos de futebol. Diz-se do Sporting, mas não sabe muito do clube e de jogadores profissionais.
“Lembro-me que jogava à bola no corredor com o meu irmão e tirava a t-shirt, sentia-me como um rapaz, e queria estar com os outros rapazes. Houve uma altura que o meu pai disse que não podia fazer isso, porque as meninas não jogam à bola, não tiram a t-shirt. Eu meti a t-shirt, mas entendi que não era eu”.
“Nem sequer sabia que outras pessoas como eu existiam”
A descoberta, a “saída do armário” e a transição são recentes para Lucas, que descobriu a palavra trans em 2020 e se entendeu como tal.
“Na minha cabeça já me tratava com pronomes masculinos. No entanto, as pessoas tratavam-me por pronomes femininos. Eu nem sequer sabia que outras pessoas como eu existiam. Não tinha a informação de que existiam as pessoas trans, tipo mudar o nome, ter acompanhamento psicológico… Isto tudo fez com que eu ficasse no armário muito tempo, se eu tivesse a informação antes, teria saído muito antes do armário e seria menos doloroso viver como eu vivia”, recorda.
Lucas acabou por assumir-se enquanto pessoa trans no final de 2020, e um tempo depois começou a transição com a testosterona, utilizada para ter um aspeto mais tipicamente masculino. É preciso ainda fazer análises regulares para ver os níveis, para ser iguais a pessoas cisgénero com a mesma idade.
“Começar isto foi a melhor coisa para mim. Antes, nem conseguia olhar-me ao espelho, não me identificava, via que estava fora do meu corpo. Depois, passei a olhar o espelho e a ter muito mais confiança. Foi incrível”, disse.
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Lucas quer fazer mastectomia, mas pelo SNS é um processo demorado. Há comparticipação, mas o jovem optou por avançar na iniciativa privada, por não conseguir “esperar mais tempo”.
Ao falar da sua orientação sexual, Lucas lembra que também foi um processo de nova descoberta depois de se entender como um homem trans.
“Antes de sair do armário como pessoa trans, sempre disse que era hetero. Mas eu sou uma pessoa bissexual. E depois de sair do armário, começar com a testosterona, as pessoas leram-me como Lucas, foi mais fácil relacionar-me com mulheres, e percebi que gostava também de mulheres”, explica.
E prossegue: “Antes da transição, não era lido como eu era, então tinha receio de como as pessoas poderiam ler-me. Agora isto até acontece com homens, as pessoas leem-me agora como homem.
“Muita gente pensa que quando uma pessoa é trans, automaticamente será hetero, mas não é assim. Identidade de género é como te sentes em relação a ti mesmo, e orientação sexual é como se sente em relação ao outro”, esclarece.
“O nome morto faz lembrar-me de uma pessoa que eu não era”
Com a saída do armário e o início da transição, começaram a surgir perguntas invasivas e situações muitas vezes constrangedoras. Lucas lembra-se de ouvir questões sobre que tipo de cirurgias queria fazer, qual genital iria ter.
“Nota-se isto quando vou a um centro de saúde e tenho de dizer que sou uma pessoa trans. Tenho de dizer aos médicos o sítio para onde tenho que ser encaminhado. Sinto que tenho de fazer esta ressalva porque há certas situações que preciso despir-me, então tenho que dizer que ainda não tenho cirurgias feitas”, explica.
Outra questão importante para uma pessoa trans é o nome. Naturalmente, vai ser atribuído um referente ao género conferido ao nascer, que vai ser trocado na transição. Este é chamado de “nome morto”, que Lucas, assim como outras pessoas trans, não revelam, pois é algo invasivo e que remete a um passado muitas vezes triste.
“Faz lembrar de que foste lido como uma pessoa que não era, então isso traz dor. Lembras-te de ser lido como uma pessoa que não eras, que não era vista pela sociedade como pessoa. Não gostamos de nos identificar pelo nome morto”, vinca.
A mudança de nome já é, inclusive, previsto pela legislação. A Lei n.º 38/2018 assegura o direito à autodeterminação da identificade de género e o direito à proteção das características sexuais de cada pessoa. Além das pessoas com 16 e 17 anos, que podem fazer a alteração do nome com autorização parental e com um atestado médico a atestar a capacidade de tomada de decisões destes jovens.
Ou seja, qualquer pessoa trans com mais de 18 anos tem direito a alterar os seus documentos com base unicamente na sua autodeterminação e não num relatório médico. Além disto, há um projeto de lei do PS para que as crianças e jovens em processo de transição social de identidade e expressão de género vão poder ser tratadas pelos nomes que escolherem.
Em relação ao seu círculo social, Lucas analisa Braga como uma cidade conservadora, mas com uma comunidade LGBTQIAP+ numerosa – e exatamente por esta razão, muitas pessoas têm medo de se assumir, pelo menos para as famílias. O jovem aponta que conhecer outras pessoas em situações parecidas deu uma sensação de pertença e identificação, algo que antes era medo.
“Este foi o ano em que comecei a pensar que não deixava de ser uma pessoa e que mais me aceitei. E quando me aceitei, foi quando pensei que tinha espaço para conhecer outras pessoas e sentir-me bem. As pessoas iam me ler como Lucas e não como uma mulher. Em junho, comecei a prestar mais atenção ao ativismo com pessoas LGBTQIAP+, e depois comecei a ir às marchas. E só de ver a bandeira trans, já sabia que ia ter um elo de ligação forte.
O Dia Internacional da Memória Transgénero começou a ser celebrado no dia 20 de novembro de 1998, na sequência do homicídio de Rita Hester, nos Estados Unidos. Os números de mortes ainda são altos, e o que a comunidade pede é que seja respeitada, incluída, e que não tenha os seus sonhos limitados pela baixa esperança de vida.