Eram 23:30 quando, esta quinta-feira, o autocarro com cerca de 70 refugiados ucranianos entrou no portão do Seminário da Silva, em Barcelos. “É muito emocionante, esta chegada mexe com todos nós”, confessava o presidente da Câmara, Mário Constantino, presente para receber este primeiro grupo organizado de refugiados a chegar ao concelho, 22 dias depois de a Rússia ter invadido a Ucrânia.
Como O MINHO noticiou, o autocarro partiu na segunda-feira das instalaões da Valérius, em Vila Frescainha S. Martinho, empresa têxtil que promoveu a iniciativa, em parceria com o Município, com destino a Varsóvia, a capital da Polónia, com ajuda humanitária e preparado para, no regresso, trazer refugiados.
“Correu tudo bem, até melhor do que programámos. Era suposto chegarmos entre sexta-feira e sábado e chegámos hoje [quinta-feira à noite]”, avalia, em declarações a O MINHO, Patrícia Ferreira, da administração da Valérius.
“Tínhamos a lista provisória de 73 pessoas, das quais 95% apareceram, por isso não tivemos grande dificuldade. Houve três que não conseguiram chegar a tempo, mas fizemos a troca por outros três que estavam na lista de reserva. Não perdemos muito tempo: cerca de meia hora a descarregar e uma hora a carregar. Foi melhor do que prevíamos”, conta.
No grupo vinham sobretudo mulheres, crianças e idosos. Alguns traziam ao colo os seus animais de estimação. Homens em idade ativa apenas um, que acompanha a família: a mulher e três filhos. Uma das poucas exceções para homens entre os 18 e os 60 anos saírem da Ucrânia. Imposta a lei marcial, naquela faixa etária só podem sair do país homens com três ou mais filhos ou que trabalhem em setores estratégicos, como compra de armas. Os restantes têm que ficar a lutar.
À sua espera tinham uma vasta equipa, desde elementos da Câmara, da Valérius, do Seminário e operacionais dos Bombeiros Voluntários de Barcelos.
Sentia-se uma enorme carga emocional. Cada uma daquelas pessoas, obrigadas a abandonarem as suas casas, ficaram com sonhos em suspenso, projetos de vida interrompidos Para já, procuram, mais do que tudo, a segurança. A paz.
“As pessoas não falavam muito, estavam reservadas e cansadas. Logo que chegaram ao autocarro adormeceram. Sentimos que queriam sentir-se seguras. Quiseram entrar logo no autocarro e ir embora. Ao fazermos paragens ao longo da viagem já estavam mais à-vontade. Sentimos que as pessoas estavam introspectivas e não queriam partilhar qualquer sentimento, para além da barreira da língua”, observa Patrícia Ferreira, acrescentando que a Valérius continua dispista “a ajudar no que for necessário e a Câmara precisar”.
No domingo chegam mais 30 refugiados
O presidente da Câmara de Barcelos salienta que a viagem “correu bem” e, apesar de os refugiados chegarem “naturalmente desconfiados” e “com receios”, tiveram em Barcelos “um acolhimento muito bom”. “A logística funcionou”, realça a O MINHO.
“Como dizia o padre Eduardo, diretor do Seminário, procurámos fazer bem o bem, ou seja dar as melhores condições logísticas para que o apoio surta o efeito desejado”, acrescenta Mário Constantino, elencando os próximos passos.
“Amanhã [sexta-feira], estas pessoas ficam aqui alojadas e vão receber os tratamentos necessários quer em termos de assistência médica, vacinação, testagem, quer na parte adminsitrativa. Vem cá uma equipa do SEF para fazer todas as diligências que forem necessárias para a legalização das pessoas, que depois, durante a semana, serão encaminhadas para os sítios que pretendem”, explica.
“Muitas delas têm familiares noutros pontos do país – Lisboa, Castelo Branco, Porto, Viseu – e irão para lá. Para as que não tiverem, já existem vários voluntários em Barcelos que disponibilizaram casas para as alojar. Estamos convencidos que para este grupo estão reunidas as condições para terem uma integração calma e tranquila em Barcelos”, sublinha, acrescentado que, nos casos em que não houver essa resposta, “a Câmara arranjará soluções”, como o “pagamento de renda ou disponibilizando habitações”.
Para já, Mário Constantino não consegue precisar quantas pessoas ficarão em Barcelos, uma avaliação que só no fim de semana “será concluída”.
Certo é que, no domingo, chegarão mais cerca de 30 pessoas. “Depois, prevemos que na semana seguinte possa vir outro grupo, que ainda não está quantificado. Estamos a preparar a logística para que possamos receber mais refugiados”, declara o autarca.
“É um choque grande”
Depois de dois anos de uma pandemia, a Europa vê-se a braços com uma guerra que ninguém esperava. Mário Constatino nota que, “em termos emocionais, é um choque grande, porque a guerra está a acontecer na Europa, o que era uma coisa impensável”.
“É um choque porque são europeus, que de repente se viram sem as suas famílias, sem os seus haveres. Há consequências para as famílias, que é o que nos preocupa neste momento, mas haverá depois outros efeitos económicos para todo o mundo, e esses ainda não podemos prever. O que nos preocupa, agora, é acolher e dar condições dignas a estas famílias que vêm à procura de paz”, conclui.
Irmãos Amorim ao volante
Ao volante do autocarro, para a viagem se fazer sem grandes paragens, foram quatro motoristas, dois deles irmãos: João Amorim, 33 anos, bombeiro sapador, em Braga, e Ricardo Amorim, 27, motorista da Universidade do Minho.
“Conseguimos conciliar os nossos empregos e embarcámos nesta aventura juntos”, refere o mais velho.
“Foi das viagens mais longas que fizemos, é muito cansativo, mas a causa ajuda a superar o cansaço, porque é extremamente gratificante ver a alegria das pessoas quando chegaram aqui e verem um sítio calmo, estarem descansadas”, conta João Amorim, lembrando que, “passados dez minutos” de o autocarro arrancar de Varsóvia, “mais de 70% das pessoas estava a dormir”. “Não faço ideia pelo que estas pessoas passaram, mas toca a qualquer um”, realça.
Ricardo Amorim considera que foi “uma experiência gratificante”, embora “cansativa”. “Antes de ser motorista da UMinho, era motorista de autocarros e, sem dúvida, que esta foi a viagem mais complicada, mais difícil e mais longa que fizemos. Mas para a causa que é supera-se tudo”, aponta.
Entretanto, com o fluxo de ajuda humanitária para a Ucrânia aumentar, já surgirem mais pedidos para estes motoristas repetirem a viagem. “Se conseguirmos conciliar com os nossos empregos, provavelmente faremos mais uma viagem, acho que a causa merece isso”, refere João Amorim.
Bombeiro de profissão, tem o hábito de colocar as emoções “um pouco de lado”, mas desta vez, nesta missão humanitária, não conseguiu: “Ver uma mãe quase a implorar para poder levar o filho quando pensávamos que não tínhamos lugar para os dois, não conseguimos dizer que não. É uma imagem que me vai ficar marcada para a vida. Eu dizia que, depois de uma pandemia, já tinha visto tudo, mas não, ainda não vi tudo na vida”.
A Rússia lançou na madrugada de 24 de fevereiro uma ofensiva militar na Ucrânia que causou já a fuga de 4,8 milhões de pessoas, mais de três milhões das quais para os países vizinhos, de acordo com os mais recentes dados da ONU — a pior crise na Europa desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
A invasão russa foi condenada pela generalidade da comunidade internacional, e muitos países e organizações impuseram à Rússia sanções que atingem praticamente todos os setores, da banca ao desporto.
A guerra na Ucrânia, que entrou hoje no 23.º dia, causou um número ainda por determinar de mortos e feridos, que poderá ser da ordem dos milhares.