«Descalça vai para a fonte Leonor, pela verdura; Vai formosa e não segura» – Luís Vaz de Camões
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Não importa se é Leonor, Carolina, Matilde, Beatriz, Laura ou Mariana.
Vai de saltos vertiginosamente altos se quer ser formosa. Raramente vai segura, pois sente-se demasiado observada; mais ainda se for uma figura pública. A exposição mediática facilita a cusquice.
Está na moda dar uma opinião ou emitir um juízo. Todos o fazem e se sentem no direito de o fazer, comadres nos cafés, comentadores na televisão, quem quiser nas redes sociais.
E se Leonor, Carolina, Matilde, Beatriz, Laura ou Mariana estiver doente, pode não estar tão bonita.
Ninguém está imune a contrair uma doença grave. Somos perecíveis, temos prazo de validade.
Como médica, apercebo-me muitas vezes que o mais penoso nem sempre é estar doente. A dor e o desconforto em menor ou maior grau têm alívio terapêutico, principalmente se o doente for acarinhado.
O maior problema reside na aceitação do diagnóstico. No segundo em que a palavra «cancro» ressoa entre as quatro paredes do consultório médico, entra em ricochete nos ouvidos do recém-doente, que a rumina mentalmente vezes sem conta, soletrando-a várias vezes até ser assimilada.
Dada a sentença, a vida não irá mais vai ser a mesma. As rotinas de trabalho substituídas pelas múltiplas sessões de quimioterapia. O medo.
Muito medo.
Ao mal-estar físico, soma-se o estigma de ser vulnerável e de estar condenado, imposto sub-repticiamente por uma sociedade que separa os «produtivos» dos «menos válidos».
O culto da imagem de eterna juventude dificulta ainda mais a aceitação da doença. A sublimação da aparência ultrapassou os limites do aceitável: dentes imaculadamente brancos, pele esticada até ao limite da elasticidade, corpos impecavelmente torneados, vale tudo para disfarçar a idade e realçar a suposta beleza estética.
Num homem, e sem querer parecer sexista, parece-me mais difícil absorver o diagnóstico de uma doença grave pela inerente incapacidade associada. Uma questão de orgulho a nível profissional e no círculo de amigos. Não é fácil ser aquele por quem se sente pena.
Numa mulher, o mais complicado é conviver com a alteração do aspeto físico resultante da doença oncológica e do tratamento. A ausência de cabelo e a face inchada pela cortisona não correspondem propriamente ao protótipo de beleza.
Assumir a sua aparência sem complexos, desfilando publicamente de cabelo rapado e cara em lua-cheia macilenta, é um ato de enorme coragem. A mulher também pode cuidar-se se quiser, comprar uma peruca ou usar um lenço. Mas isso deve ficar ao seu critério pessoal.
Se essa mulher é uma figura pública, tem obviamente o mesmo direito de decidir como se pretende apresentar.
Emitir juízos sobre essa atitude é algo a meu ver abominável. Totalmente desumano. Sem justificação plausível. Indescritivelmente hediondo.
Considerar que a publicação num jornal ou revista cor-de-rosa de fotografias de alguém cuja imagem está desfavorecida por consequência de uma doença, como forma de exibicionismo com agenda oculta, mais do que ser uma gaffe ou uma insensatez, é sinal de perturbação mental. Ou será meramente reflexo de falta de caráter e má índole. E essa exposição de um interior desumano é sem sombra de dúvida muito mais repelente que o aspeto exterior fragilizado de alguém doente, que ao pôr de lado a autoestima e encarar de frente um problema de saúde, constitui um exemplo de força anímica para outros doentes.
Calçada vai para a rua, se se sentir bem, Leonor, Carolina, Matilde, Beatriz, Laura ou Mariana; Assim será formosa e irá segura, sem dar justificação a ninguém.