Em criança, Mário Monteiro vivia momentos de pura adrenalina quando via passar o contrabando entre Cevide, aldeia de Melgaço, na freguesia de Cristoval, onde residia com os pais, e o território galego, que espreitava para lá dos rios Minho e Trancoso. À falta de momentos de azáfama, até porque só viviam cerca de 15 pessoas na aldeia, os habitantes de Cevide viam sempre com bons olhos quando algum ‘estrangeiro’ por ali passava. Os anos transformaram-se em décadas e, hoje, vivem apenas três pessoas naquela localidade de Melgaço, que é a mais setentrional (ponto mais a Norte) de Portugal. Mas graças a Mário Monteiro, a população raramente fica um dia sozinha, com visitas diárias de pessoas curiosas em conhecer o lugar onde “começa Portugal”.
Desde há 15 anos que Mário, enfermeiro de profissão a residir em Ponte de Lima, se tem dedicado à divulgação da aldeia, não só porque é ali onde estão as suas raízes, mas também em homenagem aos pais, sobretudo ao progenitor, que no leito da morte ficou embevecido com a determinação do filho em “colocar Cevide no mapa” e em devolver a granditude da Casa de Cevide, dos seus antepassados.
A infraestrutura acaba por estar envolta em algum mistério, assim como as restantes construções da aldeia. Uma casa grande, de agricultura, com uma capela datada do século XVIII, era um “enigma” para Mário. “Conta-se que terá sido esconderijo para ajudar os judeus que fugiam de Hitler. E sabe-se que passaram por Cevide à volta de 500 judeus, que atravessavam a fronteira para Portugal e seguiam depois junto ao rio Minho”, contextualiza. O dono da casa era Adriano Rodrigues, irmão do bisavô de Mário, e antigo proprietário de um banco em Vigo, na vizinha Galiza. Chegou a ser o terceiro mais rico de Portugal, mas a fortuna “perdeu-se” por entre os herdeiros.
“É aí que Cevide acaba por morrer, ficando praticamente só com casas em ruínas e meia dúzia de habitantes. Nessa altura chegaram a morar apenas cinco pessoas na aldeia, embora seja mais do que agora”, recorda Mário Monteiro, que resolveu, desde há 15 anos, investigar tudo o que pudesse estar relacionado com Cevide e começar a colocar a aldeia no radar dos turistas.
As descobertas, o marco n.º1 e a pedra de Obelix
“Descobri que existia uma ponte romana, que era a primeira passagem para a Galiza. Os caminhos de Santiago, mesmo os da Costa, acabavam por ir a Cevide, porque não havia outras pontes ao largo do rio Minho, e só quem tinha dinheiro é que podia atravessar numa barca”, aponta. Mas a grande descoberta estava ainda por chegar. O “marco n.º 1” do país. A prova irrefutável que e em Cevide onde começa Portugal. Cheio de musgo, o marco n.º 1 esteve escondido durante muito tempo, conta Mário: “Vi ali uma pedra estranha no meio da vegetação, comecei a remover as ervas e reconheci logo o número 1 gravado na pedra. E foi aí que percebi que tinha encontrado algo muito precioso: Aqui começa o território português”.
Mário explica que, “através da pedra”, começou a ver que podia dar voz a Cevide: “E assim começou a minha jornada. Chamavam-me maluco, a dizer que eu só falava naquela pedra. Comecei a andar com o marco à costas, no sentido figurado, claro, como o Obelix. As pessoas chamavam-me louco da pedra, também como chamavam ao Obelix. Agora, a qualquer sítio que vou, tenho de falar em Cevide. Eu não sou de Melgaço, sou de Cevide. Quando era pequeno tinha vergonha, e dizia sempre que era de Melgaço, mas essa vergonha passou e, agora, tenho muito orgulho, e até faço questão, em dizer que sou de Cevide”.
E o marco atraiu logo a curiosidade de alguma comunicação social, como foi o caso do jornalista freelancer Nuno Ferreira, que ali foi em reportagem depois de ter percorrido todo o país, a pé, desde o ponto mais a Sul até ao ponto mais a Norte, num trabalho para o jornal Público. Outra figura conhecida da comunicação que por lá passou é Fernando Alves, da TSF, que ali gravou uma crónica. João Baião, Jorge Gabriel, Hélder Reis ou Tânia Ribas foram outras figuras mediáticas que, ao longo da última década e meia, ajudaram Mário a promover a aldeia.
Ponto mais a Norte deu em vinho
Melgaço é sinónimo de vinho verde, mais concretamente o Alvarinho. E Mário lembrou-se de conjugar Cevide com essa característica. Apresentou uma proposta ao grupo Soalheiro e, dali, nasceu uma nova marca de vinho – “Aqui Começa Portugal”, um licor frutado, diferente do Alvarinho típico, uma vez que é turvo, privilegiando o Alvarinho original . “É, no fundo, a essência do vinho original”, constatou.
“Um dos proprietários da Soalheiro, Luís Cerdeira, foi a Cevide e abraçou o projeto, como abraça muitos outros, pois tem uma forma de estar na vida muito bonita. Imaginamos o rótulo, mandou-se para as comissões de vinhos verdes – e saiu um vinho fora da caixa, baseado no granito e natur, mais frutado e aromático, para atingir um grupo maior”, explica Mário.
O vinho é comercializado em pequenas quantidades e apenas numa adega localizada na Casa de Cevide, que era a adega pessoal dos antepassados de Mário. O vinho não está à venda em mais nenhum local e cada garrafa custa 10 euros, mas se levar uma caixa com três, paga 25. “A adega está aberta ao público com um alvará de 1957, que permitiu este negócio. Infelizmente, são muitas as lojas pequenas que fecharam e acho que elas devem funcionar”.
Ministra visitou passadiços e pediu a Mário para não vender a adega
A ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa, em novembro de 2021, visitou Cevide no âmbito do melhoramento efetuado pela Câmara de Melgaço, que instalou um passadiço junto ao marco, para tornar mais fácil a visitação. Sobre a adega de Mário, e cumprindo uma promessa que lhe tinha feito, a ministra pediu-lhe: “Por favor, nunca entregue isto”.
“Vimos as obras de requalificação do Município de Melgaço: o largo, a ponte pedonal, acessos melhorados à ponte internacional e o trilho do contrabando. Ainda tivemos o gosto de brindar na adega com vinho Aqui começa Portugal”, lia-se no twitter do ministério da Coesão Territorial. Salientou ainda o gabinete da ministra que foi feita “uma visita guiada com o incansável Mário Monteiro, orgulhoso residente e divulgador deste lugar simbólico, cada vez mais procurado por visitantes e turistas”.
Em #Cevide, o ponto mais a Norte de #Portugal, vimos as obras de requalificação do @mun_melgaco: o largo, a ponte pedonal, acessos melhorados à ponte internacional e o “trilho do contrabando”. Ainda tivemos o gosto de brindar na adega com vinho “Aqui começa Portugal”. pic.twitter.com/d7v6guZMFG
— Coesão Territorial (@coesao_pt) November 26, 2021
“É importante ter a raia povoada. Veja a situação na Ucrânia”
Conforme mencionado no início deste artigo, apenas três pessoas vivem em Cevide, atualmente. “Mas já se fala cada vez mais da aldeia, há cada vez mais gente a visitar Cevide, começa a ter vida”, refere um entusiasmado Mário, considerando ser “importante ter gente na zona da raia, até pelo que se tem visto na invasão da Rússia na Ucrânia, onde os habitantes da raia estão a fazer de tudo para impedir que as tropas russas entrem cada vez mais para o interior ucraniano”. Mário salienta que “o país tem de repensar isto tudo, até porque o nosso território demorou muito a ser conquistado”.
Quando vende o vinho, Mário fala da raia: “Tenho de explicar o rótulo, que simboliza a fronteira mais antiga na Europa, com maior estabilidade, e uma das mais extensas. Vivemos há muitos anos como irmãos com os espanhóis, e oxalá que perdure durante muitas gerações. Quando a fronteira estava fechada, já lá íamos, e eles vinham cá”.
Primeira excursão a Cevide veio de Ponte de Lima – e aldeia aumentou população em 1733%
No último fim de semana, foi altura de grande azáfama em Cevide. A primeira excursão de autocarro chegou à aldeia, proveniente de Ponte de Lima, trazendo 55 pessoas – o que representa um aumento populacional momentâneo de 1733%. “Um motorista, o Machado, da Auto Viação do Minho, tinha dito que aparecia um fim de semana destes, e cumpriu”, conta Mário, revelando que “o autocarro passou bem” na estrada de acesso ao marco n.º 1, mas é preciso sempre orientar “a logística para não haver cruzamento de viaturas, pois a estrada pode tornar-se pequena”.
Vinho provado e marco visitado, os limianos entreteram-se a dançar e a cantar, com comes e bebes, no sítio onde começa Portugal. “Fiquei muito feliz porque vi a felicidade deles”, constata o “guia” que não se considera “guia”, mas sim um filho da terra. “Geralmente pensamos que as pessoas só são felizes a ver monumentos grandiosos, mas senti a alegria deles a ver onde começava a nossa querida pátria. Senti que fui ouvido e que todos levaram Cevide no coração. Foi mais um dia memorável para a aldeia de Cevide”, concluiu.
Uma música que só dá para ouvir em Cevide
Outra particularidade da aldeia passa pelo projeto “Sons de Bolso”, elaborado pela Casa da Música do Porto, que escolheu quatro sítios (Cevide, Museu Militar, Mosteiro de Tibães e Estação Arqueológica de Freixo) para instalar um aparelho de QRCode onde é possível ouvir uma música originalmente composta para aquele local. “Assim, já não se pode dizer que vir a Cevide é para pasmar”, brinca.
Roubaram placa colocada por Américo Tomáz.
Continuando a investigação, descobriu que, outrora, existiu ali uma placa a assinalar o início do país. “Foi o Américo Tomáz [Presidente da República entre 1958 e 1974] que lá a mandou colocar, mas acabaram por roubá-la”, lamenta.
25 mil no Facebook
No Facebook, também são muitos interessados por Cevide. No grupo Amigos de Cevide (aldeia onde começa Portugal), estão já inscritas perto de 25 mil pessoas, residentes em 120 países distintos. E isso faz com que cada vez mais gente visite a aldeia onde, habitualmente, está Mário para “bem receber”.
Rede de Percursos
Cevide encontra-se, atualmente, abrangida pela Rede Municipal de Percursos Pedestres e Cicláveis do Município de Melgaço, existindo um percurso que liga a aldeia a Lamas de Mouro, dentro do Parque Nacional da Peneda-Gerês.