ARTIGO DE ANA TRIGO
Coordenadora do Grupo de Trabalho para o Empoderamento Feminino das Mulheres Socialistas – Igualdade e Direitos da Concelhia de Braga.
O ano 2020 ficará na nossa memória pela disrupção que a pandemia trouxe às nossas vidas. No entanto, já quase a perder a esperança de haver algo positivo a recordar deste ano, eis que uma mulher irá ocupar pela primeira vez a vice-presidência dos Estados Unidos da América. Um feito que nos lembra o quanto ainda é preciso evoluir, para atingirmos a paridade de géneros nos vários espectros da sociedade. A vice-presidente eleita, Kamala Harris, homenageou no seu discurso de vitória todas as mulheres que a antecederam e que foram derrubando os obstáculos no caminho. Deixou uma mensagem de esperança “Eu posso ser a primeira, mas não serei a última”. Afinal de contas ainda é preciso mais 47 mulheres vice-presidentes para equiparar a representação dos géneros na vice-presidência dos Estados Unidos. Em Portugal, se contabilizarmos desde 1976, serão precisas 14 Primeiras-ministras e 5 Presidentas da República para termos paridade na ocupação destes cargos.
As mulheres são o que eu chamo a maioria minoritária. Maioria porque correspondem a mais de metade da população. Minoritária porque não têm poder. Ainda não estamos devidamente representadas nos lugares e cargos onde se decide o rumo do Mundo. O Fórum Económico Mundial, descreve no relatório de 2020 intitulado por “Global Gender Gap Report 2020” que dos 153 países incluídos no estudo, ainda nenhum atingiu a paridade de género. A edição deste ano estima que a paridade não será atingida nos próximos 99,5 anos. A estimativa é um Século. Um Século. Este ano celebra-se os 25 anos da importante Declaração e Plataforma de Ação de Pequim. Mudou muito desde então, mas ainda não mudou o suficiente para sermos vistas como pares, como iguais, como competentes. E ainda falta pelo menos um século para podermos ter um relance do que a paridade fará na transformação da sociedade.
O impacto da representação pode ser resumido pela frase “Não podes ser o que não vês”. Algo alcançado pela primeira vez por uma mulher traduz-se numa porta destrancada, não só na imaginação das gerações mais novas, mas na alavancagem da ambição das mulheres mais maturas. A verdade é que a representação de géneros ainda não é igual. Não é igual na comunicação social. Não é igual na ocupação dos cargos de liderança e de chefia. Não é igual na distribuição das responsabilidades da vida política e da vida familiar. Não é igual na forma como é retratada a nossa evolução.
O relato da evolução humana não é realizado de forma justa e sem vieses. O papel feminino não sendo incluído, retira não só o mérito a metade da população na evolução humana, mas torna a mulher invisível. Tardiamente, a perspetiva dos feitos femininos começou a ser refletida no século XIX. Olhemos para o primeiro calendário dado como tendo sido elaborado por um homem. Porque assumiram os investigadores que foi um homem e não uma mulher a elaborar o primeiro calendário? Ou porque não assumiram, perante a dúvida, que foi feito por ambos, homens e mulheres. Caro leitor, quero acreditar que no mínimo a dúvida existiu, tal como a investigadora Claudia Zaslavsky perguntou aos seus pares: “Quem mais do que uma mulher teria a necessidade de anotar os seus ciclos menstruais?”. As marcações feitas no Osso de Ishango do Paleolítico, para além de se assemelharem ao ciclo menstrual, são interpretadas como a indicação de uma compreensão matemática. Não estou a dar conclusões sobre a época primitiva. Estou a salientar que a falta de uma reflexão séria, com a inclusão de todas as perspetivas leva à falha. Na maioria dos casos, leva à invisibilidade da mulher.
A antropologia não absorve os contributos femininos sozinha. Absorve-os com a predominância masculina nas Línguas. Ao fim e ao cabo, se tivermos 100 pessoas numa sala, não interessa se a maioria é feminina. Basta termos 1 homem para descrevermos e nos referirmos ao grupo no masculino. Pode parecer irrelevante, mas a História é escrita no masculino. Como tal, as pessoas não se apercebem que as mulheres também lá estão, só não estão representadas. Logo, facilmente esquecidas.
O fazer representar a mulher em todos os contextos, com medidas inclusivas passa a fazer sentido. O nosso cérebro procura padrões e por isso é preciso confrontar os nossos vieses inconscientes. Todos os temos. Ao lermos numa peça noticiosa sobre um grupo de pessoas “os cientistas”, “eles descobriram”, …, o nosso cérebro deteta um padrão masculino e por isso, assume erradamente, que os cientistas são homens, mesmo que o grupo de cientistas seja composto por 99 mulheres e 1 homem. E assim, o feminino, de forma inocente, acaba descartado. No entanto, a inocência deve ter um termo quando sensibilizados que isto acontece.
Devemos então evoluir a forma como comunicamos.
Quantos mais anos a maioria minoritária tem de expor possíveis soluções para as questões de género? Os profissionais de estudos de género e todas as vozes que se querem fazer ouvir indicam possíveis soluções para os problemas da maioria minoritária. Por favor, tentem ouvir e perceber. Devemos educar e formar raparigas e rapazes de forma igual. Há espaço para todos, ninguém quer tirar nada a ninguém, certo? Então, não permitamos o arrancar de oportunidades às raparigas, a absorção dos feitos femininos. Não deixemos os nossos cérebros serem iludidos pela representação predominantemente masculina da sociedade. O impacto das mulheres não deve continuar invisível. A diversidade irá aproximar-nos e irá permitir uma realidade inclusiva. Uma realidade que sirva a todos, não apenas à nossa imagem.
Nina Simone dizia que a liberdade é não ter medo. As mulheres ainda têm medo em diversas situações. Infelizmente, muitas têm medo de entrar no lar. Medo de serem assediadas em pela luz do dia. Medo de andarem na rua à noite sozinhas. Medo de não serem levadas a sério no contexto laboral. Medo de exporem o que deve ser feito e serem vistas como mandonas. Medo de que a forma como se vestem seja mal interpretada. Medo de utilizarem a voz da qual deviam ter orgulho.
Seguindo o pensamento de Nina Simone as mulheres não são livres, consciente ou inconsciente, o receio é a nossa sombra. Vamos mudar isso? Apressemos a paridade. Um século é tempo demais.
Por fim, Parabéns Kamala, finalmente uma vice-presidência dos EUA vai representar a maioria minoritária. E acreditem, já está a fazer diferença nos sonhos e ambições de todas as gerações.