Uns perdem as unhas dos pés pelo caminho, outros rebentam partes do corpo. Há quem vá a pão e água ou quem percorra parte do percurso com um pé torcido. Mas desistir não é palavra que entre no dicionário destes homens e mulheres, que assim que chegam ao destino, já só pensam em repetir no ano seguinte. Falamos, pois, da peregrinação anual a Fátima em ocasião do 13 de maio. Em Famalicão, uma associação dedica-se, desde o início do milénio, a organizar peregrinações, não só ao santuário mais conhecido de Portugal, mas também a outros locais de culto mais próximos, como Balasar (Póvoa de Varzim), São Bento da Porta Aberta (Terras de Bouro) ou Santa Rita (Ermesinde). Esta noite de sexta-feira, concentraram-se em Famalicão, respondendo à chamada da organização, para além de terem ouvido vários conselhos da PSP, que não se opõe às peregrinações nas estradas, desde que efetuadas em segurança.
Guiados pela fé (e por uma imagem de meio metro)
E se é para falar de fé, então de fé falemos. “Eu vou pela fé, porque em momentos muito maus, ela [a Senhora de Fátima] estava lá para me ajudar sem nunca me deixar cair”. Quem o afirma é Cristiana Mesquita, de Vermoim, durante a preparação para mais uma grande peregrinação a partir de Famalicão. A devota integra um grupo de 110 peregrinos que partiram esta noite do quartel dos Bombeiros Voluntários Famalicenses, rumo ao santuário, na tradicional peregrinação anual da Associação de Peregrinos de Famalicão.
Com uma imagem de Nossa Senhora que atingia o meio metro de altura, Cristiana não passava despercebida por entre os peregrinos. Este ano, faz parte do grupo de 15 peregrinos que vai na logística, ou seja, numa das viaturas de apoio. Um problema de saúde na coluna impede-a de repetir as peregrinações que fez em outros anos. Mas a fé mantém-se (ou até aumenta). A imagem, essa, acompanhará a famalicense no camião. “Pedi ao meu senhorio, porque ele tem muitas imagens, e é também uma forma de o homenagear, não só a ele mas também à mãe, que era uma pessoa muito devota”, esclareceu.
Sobre a peregrinação em si, Cristiana diz que não há forma de colocar em palavras : “Isto não tem explicação, cada um vive a peregrinação consoante o sentimento. Podemos até chegar lá a escorrer sangue, mas ao entrarmos no santuário, já estamos a prometer ir para o ano outra vez”.
Oferta de material de saúde
Ricarda Sousa, enfermeira, residente em Calendário, está junto de Cristiana, a dar os ‘últimos’ retoques antes da partida. A O MINHO, explica que, noutros anos, já foi como voluntária, onde ofereceu os préstimos profissionais a título gratuito. Este ano, também por motivos profissionais, não pode acompanhar toda a peregrinação, mas irá dar apoio durante alguns dias, para além de ter doado material médico para ajudar o grupo.
Ermelinda vai a pão e água pelo terceiro ano
Ermelinda Mansilhas é uma mulher de coragem. E de palavra. Pela terceira vez, vai cumprir o percurso alimentando-se apenas com pão e água. O marido, Alípio, encontrava-se com um problema grave de saúde, levando a que a residente em Avidos resolvesse fazer essa mesma promessa. “Agora ele está bem, por isso tenho de cumprir as promessa. E, olhe, é um sacrifício muito grande, mas tem de ser. E de certeza que vai correr tudo bem”, concluiu.
“Prefiro ir a Fátima do que ao São Bentinho”
Quem já fez três vezes esta peregrinação, e prepara-se para uma quarta, é Rosa Magalhães, residente na freguesia de Famalicão. “Muito devota” da Senhora de Fátima, e também “do São Bentinho”, confessa que prefere a pé até ao centro do país do que a Terras de Bouro. “Sou devota do São Bento, mas fui uma vez em peregrinação e, quando cheguei, disse logo que não voltava”, confessa. Questionada sobre os motivos para esta preferência, não soube explicar com palavras, mas é o que sente. Contudo, até Fátima, não vê problemas, e este será o quarto ano de uma promessa de cinco. “Falta este e outro. Enquanto houver pernas, vou. O grupo é cinco estrelas, a nível de logística, a nível de tudo, por isso vou continuar a ir”, sentenciou.
“Não vou por promessa, vou para agradecer”
Mas nem todos vão para cumprir promessa, e Nelson Gomes, de Gavião, é exemplo disso: “Move-me a fé, não vou por promessa, mas sim para agradecer pela vida que tenho. Acho que quem tem fé, deve agradecer porque as coisas não acontecem por acaso”, considerou.
Na sua segunda peregrinação, recorda com dor a primeira, com “dores musculares, bolhas nos pés, alguns colegas com virilhas rebentadas”. Mas “a entre-ajuda que o grupo teve, deu para chegar sem nenhuma desistência, e espero que este ano seja a mesma coisa. Enquanto puder, vou continuar a ir”.
“Torci o pé, mas cheguei lá”
Carlos Oliveira, de Antas, é já reconhecido como um dos veteranos deste grupo. Foi 14 anos seguidos, só interrompidos pela pandemia. Mas este ano regressa, com a mesma “fé”, para cumprir promessa. “E que a virgem nos ajude”, atirou.
O jardineiro na Câmara municipal “faz” promessas “todos os anos”, e têm sido cumpridas. “O cansaço é normal, há dias piores e outros melhores. O primeiro ano foi o pior, torci um pé, mas cheguei lá. Isto funciona como uma família, uns ajudam os outros durante o percurso”, sustentou.
Fez 1.600 quilómetros para dar apoio logístico com atrelado
Manuel Dias. de Lama, Santo Tirso, acabava de chegar de França quando foi entrevistado pelo nosso jornal. Há 32 anos a viver perto de Paris, trouxe a viatura pessoal carregada com bolachas e outros utensílios que podem ser úteis. Trazia, também, a roupa de França, pois nem tinha encontrado tempo para deixar esses utensílios em casa, já cá em Portugal.
Conta que fez a primeira peregrinação em 2017, quando completou 50 anos. “Foi uma prenda que dei a mim próprio. Rebentei com os pés, perdi cinco unhas – mas nasceram outra vez”, recorda. No ano seguinte voltou, e já não custou tanto. Este ano, vai de carro, como apoio, porque lhe pediram. No atrelado leva fogões, garrafas de gás, cafeteiras, copos, ou seja, utensílios “para fazer os pequenos-almoços, porque há locais onde o camião não chega, e este atrelado serve para ajudar o grupo”.
Cada peregrino paga 100 euros
Patrícia Ribeiro, relações públicas da Associação Peregrinos de Famalicão, explicou a O MINHO que este é o 16.º ano que aquele grupo faz a peregrinação, e este ano “é o maior ano de todos”.
São 110 peregrinos, 95 a pé e 15 na logística. O camião de apoio está apetrechado com chuveiros, com um forno para descongelar o pão, mochilas, colchões e sacos-camas e uma banca para lavar a louça. Noutras carrinhas há um frigorífico com fruta, toldos e cadeiras, uma arca, e depois temos um camião frigorífico que leva toda a carne e frescos, “porque confecionamos toda a comida no local”, explicou.
Cada peregrino paga 100 euros, e esse valor comporta toda a alimentação, entre esta sexta-feira e o próximo dia 13. O regresso terá de ser assegurado pelas próprias pessoas, mas normalmente há familiares que vão buscar e o grupo tenta coordenar para que ninguém precise regressar de transporte público.
Patrícia crê que a adesão deste ano deve-se às pessoas se terem “agarrado muito à fé” durante a pandemia: “Também acho que os preços baixos que praticamos atrai os peregrinos, para além da diversidade, porque anualmente fazemos Sameiro, São Bento, Santa Rita e também vamos muitas vezes durante o ano a Balasar, pela ciclovia”.
PSP aconselhou
Quem também marcou presença na hora da partida foi a esquadra da PSP de Famalicão, através de Fernando Santos, que discursou perante a mais de uma centena de peregrinos, com conselhos para a viagem.
O chefe da esquadra famalicense relembrou que a polícia “acompanha este fenómenos, principalmente porque poderemos assistir em 2022 a um grande fluxo de peregrinos, pela retoma quase total da vida social”.
“A PSP pretende prevenir a ocorrência de acidentes de viação e, em especial, acidentes que envolvam peregrinos”, disse, aconselhando, sobretudo aos condutores, para que “pratiquem uma condução defensiva, diminuam a velocidade de circulação, em especial ao visualizarem um grupo de peregrinos ou um carro de apoio”. É recomendada uma distância de segurança de 1,5 metros.