Vila Verde: Casa onde vive ilustrador de “Uma Aventura” há 50 anos já não vai ser vendida

Tribunal Cível de Braga declarou nula a venda do andar arrendado

O Tribunal Cível de Braga declarou nula a venda do andar arrendado ao artista plástico Arlindo Fagundes, assim como outros bens imobiliários, entre a Arquidiocese de Braga e a Fábrica da Paróquia de Marrancos, de Vila Verde, mas com a anulação do negócio, afinal os inquilinos já não poderão, conforme pretendiam, exercer o direito de preferência para poder comprar a casa, de que são arrendatários há cerca de meio século.

A questão jurídica não se afigurava nada fácil, até pela raridade deste tipo de situações envolvendo o Código de Direito Canónico e ainda a mais recente Concordata, entre a Santa Sé e a República Portuguesa, datada de 2004, mas o juiz, analisando o caso concreto, mesmo em face da pouca jurisprudência e menor doutrina, acabou por não duvidar e anulou já o negócio de compra e venda, por não ter sido autorizado pelo arcebispo.

Já que o total de imóveis transacionados, mesmo avaliados por baixo dos preços de mercado, importou em 720 mil euros, quem tinha unicamente competência legal para autorizar a transação, imobiliária, em função da referida quantia, segundo as próprias regras canónicas e concordatárias, era o arcebispo à data, Jorge Ortiga, atualmente seria José Cordeiro, mas na verdade foi o vigário-geral, cónego José Paulo de Abreu.

De acordo com o estipulado pela mais recente revisão da Concordata já adaptada dos escudos para os euros, o chamado ordinário local, que no caso é o vigário-geral da Arquidiocese de Braga, só pode autorizar esses negócios, envolvendo montantes até 250 mil euros, isto é, pouco menos de um terço do valor aqui em causa, mesmo assim tendo de ouvir o Conselho para os Assuntos Económicos, para a amissão da respetiva licença.

Mas a decisão acabou por ser dúplice, para quem moveu a ação judicial, o artista plástico Arlindo Fagundes e a esposa, Augusta Cruz, que não tendo sido informados anteriormente, para poderem exercer o direito de preferência aquando da venda dos imóveis, entre os quais o andar arrendado pelo casal, com a nulidade da venda, a casa continuará a pertencer, como sempre, à Comissão Fabriqueira da Paróquia de Marrancos, em Vila Verde, pelo que sendo assim não tendo havido legalmente venda, não há lugar ao direito de preferência.

O casal septuagenário soube apenas, inicialmente que tinha de pagar a renda para uma outra conta bancária, mas ao tentar lançar na declaração anual de IRS os gastos com os arrendamentos, percebeu que afinal tinha o andar sido vendido há um ano e meio, avançando para Tribunal Cível de Braga, com o fim de fazer valer os seus direitos, mas tendo obtido a nulidade judicial fica sem a possibilidade de sem mais comprar o andar.

Com base no Código Civil, o negócio de compra e venda, realizado sem autorização da única personalidade competente, o bispo diocesano, levou o Tribunal Cível de Braga a anular a transação dos imóveis, entre a Paróquia de Marrancos e a Arquidiocese de Braga, incluindo-se o andar arrendado pelo casal septuagenário.

Para o juiz, a nulidade do negócio, decretada com base no Código Civil, “afeta irremediavelmente o direito de preferência” do casal arrendatário, que em face da não existência legal da transação agora anulada pelo Tribunal Cível de Braga, é um direito que “nunca se chegou a materializar”, isto é, não havendo uma venda, logo não existe a possibilidade dos inquilinos poderem optar pela compra antes da venda envolver terceiros.

Casal sem direito de preferência

Arlindo Fagundes, artista plástico, desenhador e realizador de cinema, com atividade centrada em Braga e Vila Verde, mas mais conhecido, a nível nacional, por ilustrar a série de literatura juvenil “Uma Aventura”, escrita por Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, reside há 47 anos no andar, na Rua de Martins Sarmento.

Arlindo Fagundes e Augusta Cruz receberam uma carta informando que o apartamento arrendado pelo casal desde 1975 transitou para a propriedade da Arquidiocese de Braga, com a indicação da nova conta bancária onde o pagamento da renda deveria ser feito, o momento a partir do qual “vimos que algo não batia certo”.

O casal queria adquirir o andar, pelos mesmos 59.400 euros declarados no negócio de compra e venda, por força legal do direito de preferência, que recuaria à data da última transação, pelo que, segundo os mesmos, serão donos desde quase há dois anos da casa, havendo inclusivamente a descontar as rendas que pagaram desde a referida venda, em 6 de agosto de 2020, mas como a venda é nula, não há lugar a poderem comprar, segundo a sentença, cabendo ao casal, como autor do processo, pagar todas as custas judiciais do processo.

Durante o julgamento na Instância Central Cível de Braga, vários cónegos da Igreja de Braga, entre os quais José Paulo de Abreu e Roberto Rosmaninho Mariz, afirmaram que este casal, Arlindo Fagundes e Augusta Cruz, “não tem razão alguma” no processo judicial que intentou, argumentando que a venda do apartamento por 59.400 euros, da Fábrica da Igreja de Marrancos, do concelho de Vila Verde, à Arquidiocese de Braga, celebrada num cartório notarial, já a 6 de agosto de 2020, afinal foi “um negócio fictício”, para adaptar às alterações de 2004, da Concordata entre o Estado da Santa Sé a República Portuguesa, segundo as quais os rendimentos de bens não afetos ao culto religioso passam a ser tributados, designadamente com IMI e IRC.

Nas alegações finais, o advogado António José Oliveira, em representação da Arquidiocese de Braga, nunca admitiu sequer a hipótese de mesmo tendo sido registada tal transação comercial, por escritura pública, no Cartório Notarial Rodrigo Rocha Peixoto, em Braga, possa ter efeitos civis, isto é, afinal não foi uma venda, mas antes como que uma espécie de transmissão interna no seio da própria Igreja de bens não afetos a culto, mais referindo, como na sua contestação escrita, que os próprios valores desta transação foram ficcionados.

Na perspetiva da principal arquidiocese da Igreja Católica Apostólica Romana, a Primaz de Portugal e das Espanhas, à luz das regras do Direito Canónico, não houve uma venda, logo não há lugar a ninguém exercer eventual direito de preferência, porque na sua versão, “a operação consubstanciada na escritura foi realizada dentro do Código do Direito Canónico, materializando-se apenas porque a autonomia do direito canónico não alcança efeitos externos, nomeadamente para cumprimento das obrigações fiscais e registrais”, afirma aquele causídico, afirmando, em síntese, que se não houve venda real, não há lugar a direito de preferência.
O mesmo advogado refere que o valor atribuído à fração onde mora o casal, num segundo andar da freguesia de São Victor, no centro de cidade de Braga, não corresponde ao valor do mercado imobiliário, uma vez que “conforme resulta da própria escritura pública, os valores ali indicados são ficcionados, por inexistir a possibilidade real de determinar quais foram os movimentos financeiros realizados” então, entre a Fábrica da Igreja Paroquial de São Mamede de Marrancos e a Arquidiocese de Braga, “sendo certo que, o valor indicado na escritura para a fração sobre a qual pretende” este casal “exercer o direito de preferência não representa, por manifesto defeito, o seu valor de mercado”, ainda segundo considera António José Oliveira.

“Decorridos 40 anos, encontramos um enquadramento, legal, social e tributário significativamente diverso, tornando complexa manutenção de gestão dos bens, nos moldes atuais, em especial localizados no concelho de Braga, que necessitam de significativa intervenção de manutenção e conservação, com custos financeiros que o património autónomo e a Fábrica da Igreja Paroquial de São Mamede de Marrancos [Vila Verde] não estão preparados para assegurar”, refere a Arquidiocese de Braga, na contestação à ação do casal Fagundes.

 
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