Pedro Cunha é o presidente do conselho de administração da nova Unidade de Saúde Local do Alto Ave, a estrutura que reúne, desde o início do ano, o hospital de Guimarães e os centros de saúde dos concelhos de Guimarães, Vizela, Fafe, Cabeceiras, Mondim e Celorico de Basto, integrando os cuidados de saúde primários com os hospitalares, abrangendo uma população de meio milhão de pessoas.
O responsável por colocar de pé este novo modelo de organização do SNS, que acabou com os Agrupamentos de Centros de Saúde e com as Administrações Regionais de Saúde, é licenciado em Medicina pelo Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto (1998) e doutorado em Medicina Clínica pela Escola de Medicina da Universidade do Minho (2015).
Antes de assumir a presidência do conselho de administração da nova ULS Alto Ave, foi diretor clínico do Hospital de Guimarães, membro da Comissão de Acompanhamento da Covid-19 e coordenador da Unidade de AVC e Unidade de Cuidados Intermédios Médicos do Serviço de Medicina Interna.
Quantas pessoas não têm médico de família, na área de influência da ULS Alto Ave?
Há menos de 4% de utentes sem médico de família atribuído mas, desses, menos de 1% não tem uma USF onde recorrer. É o caso de um utente cujo médico de família que se reformou e cuja lista é assumida pelos colegas. A cobertura da nossa sub-região é de cerca de 96%.
Quais são os obstáculos que lhe parece que tem pela frente para implementar a ULS Alto Ave?
Vejo-os como desafios. A principal razão pela qual vale a pena aceitar esta empreitada é a possibilidade de termos uma verdadeira integração de cuidados de saúde. Facilitar os fluxos, criando um modelo de cogestão do percurso do doente entre o hospital e os cuidados de saúde primários. O utente que é seguido nos cuidados de saúde primários, quando não está controlado, deve chegar ao hospital antes de ter um episódio agudo que o leve à urgência. Temos que criar portas de contacto entre os serviços hospitalares e os cuidados de saúde primários.
Os profissionais nas ULS passarão a ser remunerados por objetivos?
Há muito tempo que na Saúde se trabalha por objetivos. Tanto nas Unidades Locais de Saúde (USF) como nos hospitais que também tinham indicadores a cumprir.
Parece-lhe que o facto de haver na ULS Alto Ave profissionais da mesma classe, com tempos de serviço e formações semelhantes, mas com salários muito diferentes, pode ser um obstáculo para o bom funcionamento deste novo modelo?
Todos os profissionais estão dentro da ULS Alto Ave, as carreiras não são determinadas pelos conselhos de administração, são reguladas pelas tutelas e nós temos que cumprir. As regras do jogo estão definidas há muito tempo e continuará a ser o Estado a tratar desse assunto com os seus funcionários.
Mas, por exemplo, um enfermeiro no hospital ganha 1.300 euros e numa USF pode ganhar até mais 900 euros, dependendo das unidades ponderadas. Mas, agora estão na mesma organização e trabalham para os mesmos objetivos?
Quem define as carreiras é o Estado na relação com os profissionais. Os colegas que trabalham numa determinada área sabem a base salarial e progressão na carreira que têm, diferente da de outros que trabalham noutras áreas. A possibilidade de concorrer para um ou para outro local é livre. Uma coisa importante é que todos sabem qual é o salário de uns e de outros, num processo transparente. Não compete ao conselho de administração definir se deve haver harmonização salarial.
Quais são os grandes problemas de saúde da população coberta pela ULS Alto Ave?
As maiores causas de mortalidade nesta região são as doenças cardiovasculares e as de foro oncológico. Com uma particularidade de, no caso das doenças cardiovasculares, os acidentes vasculares cerebrais (AVC) serem mais frequentes, por oposição ao que acontece em outras regiões em que há uma predominância do enfarte e da angina. Há, nesta região, uma prevalência muito elevada de vários fatores de risco: tabaco, obesidade, sedentarismo, colesterol e pressão arterial elevados, excesso de consumo de sal. É aqui que os cuidados de saúde primários têm um papel fundamental, evitando que os utentes tenham que recorrer aos hospitais, com episódios de doença grave.
O processo clínico único é fundamental, para que haja uma comunicação fácil entre os cuidados de saúde primários e os hospitalares, é fundamental. Em que estado é que está o processo de implementação desta ferramenta?
Já existe e já existia antes das Unidades Locais de Saúde (ULS) a possibilidade de tanto os hospitais como os cuidados de saúde primários poderem aceder à informação uns dos outros, através de uma plataforma informática, contudo, apenas a uma parte dessa informação. É uma ferramenta que tem que ser melhorada, para que a informação sobressaia de uma forma mais rápida. Para evitar duplicação de procedimentos.
A duplicação de procedimentos implica dobrar a despesa?
Mais do que isso, implica ocupar estruturas com exames que são redundantes. Isso significa que não somos capazes de oferecer exames com a rapidez necessária a quem precisa deles.
Os Centros de Responsabilidade Integrados (CRI) podem ser uma forma de aproximar o trabalho por objetivos no hospital do que já se vem fazendo nas USF?
O que importa, quando implementarmos um CRI, é encontrar o profissional certo para colocar o grupo a trabalhar com objetivos específicos, tendo uma exigência acrescida relativamente a uma estratégia assistencial normal. Isto vai permitir que este profissional aufira um conjunto de suplementos, relativos a esse trabalho extra.
Não é o dinheiro que vai fazer com que os profissionais corram essa “extra mile”?
Está provado que, para estas novas gerações, não é apenas o dinheiro que faz com que as pessoas se dediquem a um projeto. As pessoas procuram um equilíbrio entre a vida profissional e pessoal. A existência de diferentes modelos de organização do trabalho também permite flexibilizar a forma como cada um dos profissionais se quer relacionar com a ULS.
A vinda ao serviço de urgência de casos classificados como “não urgentes” está muito relacionada com a falta de resposta nos cuidados de saúde primários, nomeadamente à noite e nos fins de semana. Agora que os centros de saúde estão “debaixo do mesmo chapéu” administrativo do hospital, é possível fazer alguma coisa para resolver este problema?
As pessoas quando desenvolvem um sintoma que é anormal tem necessidade de procurar apoio clínico, sem terem noção da gravidade do que estão a sentir. Têm receio, não as podemos culpar por sentirem necessidade de vir ao médico. Temos é de lhes dar informação para elas saberem distinguir as situações que merecem procura imediata de cuidados de saúde das outras que podem ser resolvidas com autocuidado. Foi criada uma linha telefónica (SNS 24) para onde as pessoas ligam a dizer aquilo que sentem e que lhes dá indicações. Além disso, há a equipa de saúde familiar e, claro, em fim de linha existem as urgências dos hospitais. As pessoas precisam de ser capacitadas para perceber quais são as situações que podem aguardar para ser vistas pelo médico de família. É uma questão de literacia em saúde.
Contudo, não podemos pegar nos médicos de saúde familiar e pô-los a tratar doença aguda, apesar de os cuidados de saúde primários terem serviços de atendimento complementar (SAC) que ficam entre o autocuidado e a vinda ao hospital. Se cada pessoa que tiver um sintoma for a correr para a urgência, a eficácia das equipas vai diminuir e não vão ser capazes de responder com a eficácia necessária aos casos mesmo graves.
Quanto mais facilmente as pessoas acederem ao médico de medicina familiar e tiverem com ele acertadas as estratégias a respeito da sua doença, menor é a necessidade de virem à urgência
Nos cuidados de saúde primários deveria haver meios complementares de diagnóstico que permitissem evitar o direcionamento para as urgências hospitalares de certos casos mais simples?
Há vários tipos de urgências, básicas, médico-cirúrgicas e polivalentes. Os médicos de família têm uma atribuição muito importante que não nos pode faltar. Quando as urgências estão sobrelotadas, isso é um sintoma do que se passa a jusante e a montante.
Precisamos de saber se temos a urgência cheia, se o hospital tem capacidade no internamento, mas principalmente se as pessoas conseguem contactar o seu médico de família. Quanto mais facilmente as pessoas acederem ao médico de medicina familiar e tiverem com ele acertadas as estratégias a respeito da sua doença, menor é a necessidade de virem à urgência. Queremos as equipas de medicina familiar viradas para isto e não para a doença aguda.
Portanto, não queremos montar no centro de saúde uma urgência. Queremos, isso sim, dar-lhes acesso a ferramentas que lhes possam tirar dúvidas: avaliar um eletrocardiograma; gases no sangue; a urina; ter um rx portátil. Com o benefício de poderem estar ligados em telemedicina com os diversos especialistas no hospital. A ULS Alto Ave tem três semanas, mas já deu provas: no início de janeiro, quando tivemos que acionar o plano de contingência devido às infeções respiratórias, pela primeira vez, esse plano foi acionado de forma articulada no hospital e nos centros de saúde
O pico de afluência às urgências, neste início de ano, está relacionado com a gripe?
Com as infeções respiratórias, sim, mas temos que perceber que não é uma situação exclusivamente portuguesa. Há um pico de gripe que varre a Europa toda. Um dos maiores hospitais de Madrid colapsou há duas semanas, em Roma, há 15 dias, havia mais de 1.100 doentes à espera de cama para internamento. Está a acontecer o mesmo em França, na Inglaterra… Nós não vivemos num oásis.
Quando a população não estava tão envelhecida, estas infeções causavam menos problemas?
Há diferenças que temos que considerar. De uma forma geral, relativamente à gripe é verdade que o envelhecimento da população é um factor a ter em conta. Mas, entre 2009 e 2011, quando surgiram os primeiros casos de gripe A, por vezes, até atingiam mais as pessoas mais jovens. Era um agente novo, com o qual os seres humanos nunca tinham estado em contacto. Percebeu-se até que as pessoas mais velhas, que tinham estado em contacto com a Gripe Espanhola, tinham algum tipo de imunidade. Com a covid foi ao contrário, varreu jovens e idosos, mas com consequências mais danosas para quem tinha mais idade. A gripe também é assim, quem é mais velho e tem mais comorbilidades corre mais riscos quando há um episódio epidémico.
As pessoas devem vacinar-se o mais possível e devem repetir a vacina todos os anos
A vacina é a solução?
Sem dúvida nenhuma. As pessoas devem vacinar-se o mais possível e devem repetir a vacina todos os anos, porque são vírus com uma grande capacidade de mutação para os quais nunca adquirimos imunidade. É uma responsabilidade comunitária, os mais jovens devem apoiar, informar e acompanhar os mais idosos para se vacinarem.
O presidente da Câmara de Guimarães referiu-se à necessidade de um novo bloco para o hospital “pelo menos do tamanho do existente”. Este edifício faz falta e isso permitiria que a oferta de serviços também fosse alargada?
Atualmente funcionamos como ULS, servindo seis concelhos, uma população de meio milhão de pessoas. Isso obriga a que haja readequações dos edifícios, se isso conduzirá à necessidade de fazer, no curto prazo, aqui no hospital ou nos seis concelhos, novos edifícios, é algo que a seu tempo terei todo o gosto de discutir.
Ver o hospital reconhecido como centro universitário é uma ambição?
Já há o reconhecimento prático das 38 instituições de ensino que aqui colocam os seus alunos, são mais de 1500 por ano. Isto é uma prova da qualidade e da excelência dos profissionais que temos a ministrar essa formação. Depois, há o reconhecimento formal pelas estruturas que o podem fazer. Assumimos o desafio de demonstrar que somos merecedores desse reconhecimento.
Quando se diz que o sistema vai estar mais próximo do doente em que é que isso se materializa?
Por exemplo, um doente que resida em Fervença e que tenha um exame para fazer no hospital, anteriormente não tinha outra alternativa senão vir a Guimarães. Atualmente, temos centros de colheita nas USF e uma viatura a fazer a recolha dos espécimes analíticos para que possam ser analisados sem as pessoas se deslocarem.
Terão que ser desenvolvidas métricas para avaliar a capacidade das ULS para evitar que as pessoas não adoeçam?
Essa é uma das propostas que está em cima da mesa há vários anos e que é praticada noutros países. Estamos a começar um processo de diálogo, sobre quais são os indicadores de monitorização da atividade no contexto de uma ULS. Só depois disso é que podemos chegar a indicadores mais concretos.