Professora de Braga ganha 1.100 euros e paga 290 por quarto em Lisboa. Senhorio vai aumentar para 350

É um dos rostos do problema da habitação em Portugal
Foto: Paulo Jorge Magalhães / O MINHO / Arquivo

A crise na habitação condiciona as vidas de Ana Silva, professora de Braga, e Maria Marques, auxiliar de ação médica, dois rostos de um problema identificado em sondagens recentes pela esmagadora maioria dos portugueses e que será tema exclusivo do Conselho de Ministros desta semana.

No concelho da Amadora, a professora do 1.º ciclo Ana Silva recebe a Lusa na pausa para almoço.

Confessa que a sua situação habitacional não é “aquilo que mais idealizava” aos 35 anos.

“Mas, dadas as circunstâncias, da minha profissão e o salário que tenho, não tenho outra oportunidade a não ser partilhar casa e viver apenas num quarto”, lamenta.

Vive num “T2 transformado num T3” no Alto da Brandoa, perto da escola onde está colocada este ano.

Solteira, paga 290 euros por um quarto, num apartamento que partilha com outras duas mulheres. “Vivemos de uma forma muito individualizada, cada uma faz a sua rotina”, descreve.

Ana recebe recibo de arrendamento e não tem queixas do senhorio, mas o aumento de renda anunciado para julho já fez a professora natural de Braga tomar uma decisão quanto ao futuro: “Não vou cá continuar porque, com um salário de 1.100 euros, pagar cerca de 350 euros de quarto, acho que já começa a ser lamentável e não suporto esta situação”, frisa.

Mas Ana já viveu pior, quando ficou colocada no Algarve, onde teve de deixar a casa alugada nos meses de verão “porque o preço aumentava cerca de 1.500 euros por quinzena”.

Chegou a procurar alternativa no parque de campismo, mas, mesmo aí, era “um valor completamente absurdo”. Teve a sorte de encontrar uma família que praticou “um preço justo”.

Para se chegar à casa de Maria Marques há que furar as filas de turistas que se acumulam para entrar no Castelo de São Jorge.

Forçada a sair pelo senhorio da casa onde morava no bairro da Mouraria, a auxiliar de ação médica teve de recorrer ao apoio de associações para conseguir uma habitação camarária num valor comportado pelo seu salário mínimo.

Na Mouraria pagava de renda 220 euros, valor que continuou a pagar durante os dois anos em que a casa esteve em obras e que a obrigaram a ir viver com colegas. Quando voltou, recebeu uma carta de cessação de contrato: afinal, o senhorio “precisava da casa”.

Recusou-se a sair, não tinha para onde ir. Mas o assédio foi mais forte. “Ameaçava mesmo, às vezes até da rua para a janela. ‘Ainda estás aí? Quando é que sais?’ E coisas assim do género. Tinha mesmo medo daquele homem”, confessa.

O impacto na sua saúde mental foi “muito grande”, tendo mesmo prejudicado o seu emprego, porque não tinha condições para trabalhar. “Foi um processo difícil”, descreve.

“Acho que isto vai-me acompanhar o resto da vida”, acredita esta mulher de 63 anos, viúva. “Quando surgem pessoas ainda a precisarem de casa – porque isto não acabou, eles a continuam a despejar pessoas –, fico triste, relembro o que passei”, diz.

Mudou de bairro, mas a freguesia manteve-se: Santa Maria Maior, “o coração de Lisboa”, que reúne os bairros do centro histórico, onde vivem perto de dez mil habitantes, que vêm diminuindo mais ou menos ao ritmo a que aumenta o turismo.

Nascida na Pampilhosa da Serra, Maria foi criada ali perto, onde ainda vive a sua mãe e uns “poucos” vizinhos.

“Esta zona hoje é uma aldeia para aqueles que cá vivem, porque são só dois ou três e, desses dois ou três, dois são idosos e o outro já está a caminho. Os jovens saíram, também foram forçados a sair, alguns já pagavam rendas de 700 e 800 euros, mas tiveram que sair e procurar noutro lado”, relata.

“Mesmo assim, eles [os jovens] vêm sempre ensaiar na altura das marchas populares ao seu bairro e, se tivessem possibilidades de voltar, muitos voltavam. (…) Já não há crianças, já não há jovens nos bairros”, lamenta.

Em 2018, Maria recebeu as chaves da nova casa exatamente no local da conversa com a Lusa, junto ao parque infantil onde agora brincam crianças filhas de estrangeiros, alguns já residentes, outros apenas de visita.

Com vista sobre a cidade, Maria aponta um a um os prédios desocupados e inabitados, alguns dos 48 mil que fazem do município de Lisboa o líder dos alojamentos vagos (segundo o “Diagnóstico das Condições Habitacionais Indignas na Área Metropolitana de Lisboa”, feito por uma equipa na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa e apresentado recentemente).

Esta paisagem revolta-lhe “as miudezas”, diz. Maria já não viu o prédio em frente do rés-do-chão exíguo e escuro em que agora habita com gente dentro. “Tiraram de lá as pessoas. Para quê, para ficar assim?” Assim é devoluto e com andaimes. Uns metros abaixo, a placa “for rent” dirige-se a outro público. Já os filhos dos moradores precisam de um cartão de acesso à zona histórica, pelo qual pagam “25 euros por ano” e que “só lhes dá direito a ficarem meia hora”.

À janela da porta com portada que dá para a Rua do Recolhimento, Maria atrai a curiosidade dos turistas. “Não estão à espera que viva aqui gente”, comenta.

Proprietários, inquilinos, associações pelo direito à habitação e especialistas conseguem chegar a consenso sobre algumas das respostas para a crise da habitação, por exemplo o reforço da habitação pública, o maior apoio às rendas e o aproveitamento das casas devolutas.

A Assembleia da República debate hoje um diploma do PCP que prevê a criação de um regime para proteger a habitação própria e evitar situações de incumprimento, como forma de responder a um “problema gravíssimo” gerado pelo aumento das taxas de juro.

O debate decorre na véspera de uma reunião do Conselho de Ministros exclusivamente dedicada à habitação.

 
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