O padre José Silvino é capelão do Hospital Senhora da Oliveira, em Guimarães, há onze anos. Teve que suspender a missa por causa da pandemia, mas não deixou de dar assistência a quem dela precisava. Se alguém tem dúvidas do que faz um capelão, basta percorrer alguns corredores do Hospital ao seu lado para ver como é recebido por doentes, enfermeiros, auxiliares, administradores e visitantes. “Padre Silvino, sou eu [dizendo o nome], vim buscar o meu marido, ainda bem que o vejo”, diz uma senhora que o abraça, no átrio do Hospital. O padre José Silvino vê mal, devido a um problema de visão, mas percebe-se que mantém o rebanho sob vigilância. “Tem que tirar uma semana para ouvir a minha confissão”, diz-lhe um auxiliar ainda jovem. A chefe do serviço de neonatologia encontra-o e começam a falar da “nossa menina”, uma prematura que ambos conhecem pelo nome e que parece que tem bom prognóstico, alegram-se como se fossem da família.
Como é que a Igreja escolhe um padre para ser capelão de um hospital?
Por direito existe o serviço de assistência religiosa nos hospitais, a que as dioceses estão atentas, portanto, o bispo diocesano faz uma proposta aos hospitais que ficam na sua jurisdição. Depois, é o hospital que contrata o padre para os seus quadros. Há diversas situações contratuais, há padres com vínculo, com contrato individual de trabalho, é o meu caso. Outros que são pagos em regime de prestação de serviços, deslocam-se ao hospital quando os doentes pedem e outros ainda que fazem este trabalho por puro voluntariado.
A assistência religiosa no Hospital de Guimarães é um exclusivo da Igreja Católica?
O Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa (SAER), nos termos da lei, é inter-religioso. Desde a promulgação do Decreto de Lei 253, de 25 de setembro de 2009, criou-se um grupo de trabalho inter-religioso que vai dialogando com o Governo, para passarmos de um pequeno cantinho religioso para um serviço mais atuante nos hospitais. Um serviço que surja, não só como um direito dos doentes, mas que também tenha deveres. Um serviço que preste contas da missão que lhe é acometida.
Há quanto tempo é capelão no Hospital Senhora da Oliveira?
Cheguei aqui há onze anos.
Tinha alguma experiência neste tipo de trabalho, ou alguma formação que o preparasse para o que veio encontrar?
No meu caso pessoal, fui aprendendo na tarefa. Sou padre há 29 anos, estive 16 anos com três paróquias e foi ao fim desses 16 anos que o senhor bispo me convidou para assumir esta missão, uma vez que o capelão anterior atingia os 70 anos e, por lei, não podia continuar. Se me pergunta porque é que o senhor bispo me escolheu a mim? Não sei. Antecipadamente não tinha nenhuma formação e confesso que não gostava de vir ao hospital. Vim aqui, no máximo três vezes, nos 16 anos anteriores. Quando me pediam assistência espiritual para uma pessoa internada, dizia sempre que no hospital havia um capelão e entrava em contacto com o colega.
Foi uma decisão difícil?
Foi uma decisão que tive que tomar numa semana, com muitas dúvidas. Fui aprendendo. Fui ter com o padre Nuno, capelão do Hospital de São João, no Porto, que era uma referência e pedi-lhe ajuda. A Pastoral da Saúde e a Coordenação Nacional dos Capelães também organizam formação, anualmente, em Fátima. Passei a frequentar essas ações. Eu faço parte de uma última fornada de capelões, com o Decreto de Lei 253 fica extinta a figura. Agora passa a haver um coordenador da assistência espiritual e religiosa.
Essa figura pode não ser o sacerdote católico?
Sim, numa região em que predomine outra religião pode ser um ministro de outra fé. Geralmente, têm em conta a representatividade das comunidades religiosas, em Portugal, a maioria são católicos e, portanto, é um padre que coordena o serviço.
Há outras pessoas a trabalhar no serviço?
Aqui, no HSOG, agregado ao capelão, temos voluntários. Há hospitais que pela sua dimensão têm mais que um padre, podem ter uma irmã religiosa, um diácono, eventualmente um pastor evangélico… Também depende muito da abertura das direções.
Como é que funciona aqui no HSOG a ligação entre o SAER e a direção?
Eu estou aqui já com a quarta direção e a relação tem sido sempre ótima.
“Aqui vemos aquele sofrimento a que chamamos muitas vezes desumano”
Apesar de um padre estar habituado a contatar com a dor, num hospital a realidade é diferente, a dor é mais física, mais palpável. Como é que aprendeu a lidar com isso?
Há vários episódios que fui registando. Aqui no hospital há dor, mas neste espaço passa-se para o sofrimento e isso já implica mais que apenas a dor. É o físico, o psíquico, o espiritual, é todo o ser que se põe em causa. Porque aqui vemos aquele sofrimento a que chamamos muitas vezes desumano. Coloca-se a questão de Deus, para quem acredita e também para quem não acredita, frequentemente.
A equipa de cuidados paliativos falava ontem numa reunião de um doente que estão a tratar que pesa 30 quilos. Basta imaginar o que isso é, um homem adulto reduzido a 30 quilos de pele e osso.
Qual é a resposta que um padre dá a isso?
É olhar para aquela cama e ver ali um outro Cristo. Se não for assim não há esperança.
Colocam-lhe muitas vezes a eterna pergunta: se Deus existe e se ele é infinitamente bom, porquê tanto sofrimento?
Sim, muitas vezes. Essa é uma pergunta de hoje, de ontem e de amanhã. O hospital é a maior de todas as paróquias, embora possa não corresponder a todos os critérios de uma comunidade. O hospital tornou-se no centro da vida: passa-se aqui o nascer e o morrer. Hoje quase todas as pessoas nascem aqui e aqui vêm morrer.
Morrem aqui, muitas vezes sozinhas, ou rodeadas de gente que não conhecem?
Exatamente. O centro da fé católica assenta no facto de o filho de Deus, Cristo, ter padecido, morrido e ressuscitado. Aqui no hospital passa-se o mistério pascal todos os dias: paixão, morte e ressurreição. Perante a dor absoluta, muitas vezes, quem tem fé recua para o questionamento do porquê, ou para o abandono.
E o contrário, aquelas pessoas que não acreditavam e que há última hora se viram para Deus, também acontece?
Isso acontece, sim. Muitas vezes é outra pessoa que me diz, “senhor padre, se puder passar por lá, ele não acredita em nada, mas passe por lá”. Até por isso, em termos de indumentária, optei sempre por andar à civil, apenas com a bata e identificação. Quando, por solicitação da família ou da equipa de enfermagem, me indicam uma pessoa eu, é claro, vou. Apresento-me e logo ali se percebe se aquela pessoa quer mais uma palavra.
“Ficamos dependentes, nas mãos dos outros. É uma experiência de fragilidade”
Quem são essas pessoas? Há um perfil?
São muitas vezes pessoas que foram criadas na religião católica e que se afastaram por razões diversas da vida, abandonaram a prática. Depois de estarem aqui um dia, dois, uma semana, quando aparece um diagnóstico mais complicado, começam a fazer uma revisão da vida. Muitas vezes, tomo conhecimento, primeiro, por outra pessoa e passo por lá para levar uma palavra. Uma palavra simples e sem proselitismo, vou com disponibilidade para escutar. Daí, depois, a pessoa, por vezes, já se quer confessar ou receber a santa unção.
A vida é muto agitada, frequentemente, só quando chegam aqui é que as pessoas encontram o tempo que antes não tinham. “Não tinham tempo para nada e agora estou aqui este tempo todo”, dizem-me.
A experiência de estar hospitalizado é muito intensa?
É um despojamento. Só aquela questão de ficarmos nus, só com uma bata, mais nada. Ficamos dependentes, nas mãos dos outros. É uma experiência de fragilidade.
É frequente estarem internadas pessoas que não são visitadas por ninguém?
Não lhe sei quantificar, mas sim. Procuro, numa primeira abordagem, saber se tem família, de onde é, se tem visitas. Às vezes percebe-se que há alguém sozinho e, nesses casos, procuramos estar mais atentos. Temos os nossos voluntários do SAER a ajudar em algumas tarefas, por exemplo, a servir o jantar, para chegar às pessoas. A ideia é, com a ajuda dos enfermeiros, chegar a quem tem menos visitas ou não tem visitas nenhumas. A ajuda no serviço do jantar é uma porta de entrada para chegar ao utente. Esta foi uma das atividades que parou com a pandemia, esperamos agora retomar, o mais brevemente possível.
Até que ponto é que a pandemia limitou a sua ação?
Como aconteceu um pouco em todo o lado, o voluntariado foi suspenso. Em alguns hospitais, o padre também foi convidado a ausentar-se. Aqui, no primeiro confinamento, pediram-me que ficasse mais por casa, mas sinto que foi pela amizade que têm por mim. Em certos hospitais, aproveitaram esta oportunidade para afastar o capelão. A lei nunca proibiu a assistência espiritual e religiosa, mesmo no confinamento.
Mantive-me sempre em contacto via telefone. Mais à frente, tornei-me num veículo de comunicação com as famílias que não podiam visitar. Trazia uma palavra, procurava uma informação, isto já no segundo confinamento.
Quem trata também sofre porque tem que conviver com a dor, os profissionais do hospital também o procuram?
Diretamente, não em grande número. Mas quando passo pelos serviços, pedem-me uma bênção. Por vezes junto duas ou três enfermeiras, rezamos um pouco e dou-lhes uma bênção. O cuidador fica ferido, porque cuida da dor do outro e sente empatia, por isso precisa de paz de silêncio e de algum mimo. Havia uma profissional que, antes de começar os turnos, passava por aqui, pela capela do hospital. Ficava aqui um bocadinho, no silêncio, e acabava por adormecer. É ótimo que isso aconteça que as pessoas possam encontrar aqui paz.
Brevemente, vamos organizar o SAER em Beleza, com uma consultora estética que estará aqui para fazer uma sessão para as profissionais do sexo feminino terem um miminho. Isso faz parte do SAER? Faz, porque as pessoas precisam de mimo. Todos nós precisamos de tempos e lugares saudáveis.
Uma médica dizia-me, um destes dias, “nós sabemos que o senhor padre anda por aí e que reza por nós”. É esta presença que é importante.
Celebra-se missa aqui na capela do HSOG?
Celebra-se, embora tenha sido cancelada com a pandemia. Antes, havia uma vez por semana. Neste hospital nunca fomos proibidos de celebrar, mas neste momento estamos a celebrar apenas a pedido. Logo que possamos, vamos retomar a eucaristia semanal, que deverá ser num dia de semana à tarde, para não interferir no funcionamento dos serviços.