Ivo Fernandes, de 35 anos, terminou o curso de enfermagem em 2010 e trabalha no Serviço de Urgência do Hospital de Braga desde essa altura. De Monção, recentemente regressou da Turquia, onde esteve, integrado uma força da Proteção Civil, parte de uma missão internacional de busca e salvamento. Nas várias ações em que participou, de 10 a 17 de fevereiro, ajudou a recuperar com vida um rapaz de 17 anos, um homem de 40 e uma família de quatro pessoas. “Infelizmente” os mortos que viu a serem retirados dos escombros foram em número muito superior aos que encontraram com vida.
No dia 6 de fevereiro, uma segunda-feira, o mundo acordou com as notícias da tragédia de milhões de pessoas afetadas, na Turquia e na Síria, por um dos sismos mais fortes dos últimos cem anos. O terramoto de magnitude 7,8 na escala de Richter atingiu sudeste da Turquia e o noroeste do Síria, por volta das 4:17 (menos três horas em Portugal) e deixou milhares de pessoas desalojadas, numa noite com temperaturas negativas. “Nenhum país no mundo está preparado para responder a esta escala de destruição”, afirma o enfermeiro Português, “só com cooperação internacional é que é possível prestar socorro numa situação destas”, acrescenta.
Treina para estar pronto quando é preciso
Ivo Fernandes é filho de outro enfermeiro que trabalhou no Gil Eanes, quando a embarcação era um navio hospital que apoiava os barcos da faina do bacalhau, nas águas do Atlântico Norte. É bombeiro voluntário desde os 18 anos e membro da Subzone, uma associação sem fins lucrativos, de Monção, que se dedica a desenvolver ações de busca e salvamento. Logo após as primeiras notícias do terramoto, os elementos desta equipa, constituída por voluntários, disponibilizaram-se para avançar para o terreno. “É para isto que treinamos, não podíamos reagir de outra forma”, garante o enfermeiro. A Subzone tem uma equipa de SAR (search and rescue) que é acionada pela Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, de acordo com os protocolos estabelecidos. Esta equipa treina regularmente em exercícios internacionais, como o SARDAY. Nestas simulações, equipas SAR de vários países, integradas no INSARG (International Search and Rescue Advisory Group), das Nações Unidas, aprendem a trabalhar em conjunto para situações como a que aconteceu na Turquia e na Síria.
Para Ivo Fernandes, habituado ao apoio a incêndios e aos salvamentos no Rio Minho, esta foi a primeira situação num teatro de operações de catástrofe. A equipa da Subzone foi composta por nove elementos: dois enfermeiros, um médico e seis socorristas. Depois de apresentarem a disponibilidade para avançar, tiveram que aguardar pela própria Turquia fazer o pedido de auxílio às autoridades portuguesas. “Entretanto, tratei de pedir no Hospital de Braga para me ausentar. O meu chefe de serviço foi extremamente compreensivo e libertou-me de imediato, deixando a burocracia para mais tarde”, reconhece.
A primeira visão “foi um cenário de destruição total”
A equipa minhota acabaria por partir de Portugal no dia 9, três dias depois da tragédia. “Aterramos em Instambul, daí viajamos de autocarro para Antana, de onde fomos transportados, de helicóptero, para Hatay”, conta Ivo Fernandes. “Chegamos durante a madrugada do dia 11, com o sol a nascer e a primeira imagem que tive, quando o helicóptero deu meia volta para aterrar, foi um cenário de destruição total numa extensão de quilómetros. Uma cidade, talvez como o Porto [Hatay tem um milhão e meio de habitantes] em termos de dimensão, completamente destruída”, recorda.
Depois de chegar ao terreno, a sensação não melhorou. “Era impressionante, não havia um único edifício que não estivesse afetado. Os que não ruíram ficaram inabitáveis. Em alguns prédios altos, os pisos mais próximos do solo abateram, mas o resto da estrutura ficou de pé”, relata.
Desidratação é o maior problema para os sobreviventes
Outro aspeto que surpreendeu a equipa portuguesa foi o frio extremo. “De dia podia subir aos sete ou oito graus celsius, mas de noite baixava para -17º C”. Apesar das dificuldades, principalmente para as pessoas que ficaram desalojadas e para as equipas que iam de climas mais amenos, “as baixas temperaturas terão contribuído para que muitas pessoas que sobreviveram ao sismo e que ficaram subterradas conseguissem sobreviver vários dias, até as equipas as conseguirem encontrar. Nestas condições, a desidratação é uma das principais causas de morte e quanto mais alta a temperatura maior é a sudorese (transpiração) e, portanto, as vítimas, nessas condições, perdem água mais rapidamente”, esclarece.
As equipas em que Ivo Fernandes esteve integrado salvaram um rapaz de 17 anos e um homem de cerca de 40 anos. “Também encontramos uma família de quatro pessoas, presa numa caixa de ar, juntamente com um cadáver”, relembra. Ivo Fernandes explica que a ação dos enfermeiros, quando estes sobreviventes são encontrados, é orientada para resolver os problemas de desidratação e de desnutrição. “Por norma, estas pessoas não apresentam lesões, estão é há muitas horas sem beber e sem comer. Damos-lhes soro para repor os sais minerais e para fazer chegar algum açúcar ao sangue. Se estiverem em condições de o fazer, começam a ingerir alguns alimentos sólidos”.
Algumas pessoas não abandonavam o local onde tinham perdido os seus entes queridos
No meio do cenário de destruição, Ivo Fernandes viu muitas pessoas a abandonar as zonas urbanas, para procurarem ajuda nos campos de refugiados que foram montados na periferia da cidade. “Mas também vi muita gente que montava vigília junto aos destroços. Faziam fogueiras e ficavam ali, à espera que ajuda chegasse, porque tinham perdido ali alguém e não queriam deixá-los para trás”. O enfermeiro soube que, por vezes, estas pessoas telefonavam a pedir ajuda, dizendo que tinham ouvido gritos, uma forma de atrair as equipas de socorro. “Quando se chegava lá, verificava-se que os gritos já tinham parado há dois dias”, conta, angustiado.
Ivo Fernandes confessa que ficou bem impressionado com a capacidade de resposta da Turquia, “têm pessoal muito bem treinado e ambulâncias bem equipadas”. Mas ressalva que nenhum país está preparado para reagir a uma situação deste tipo, “nem o país mais rico”. Dos sete dias que durou a missão, a principal lição que trouxe foi a de aprender a “trabalhar fora de uma estrutura que nos dá proteção, como na Urgência do Hospital de Braga”.
O que mais o mais o marcou foi o constante odor a cadáver. A contagem dos mortos já ultrapassou os 45 mil, mas na opinião de Ivo Fernandes, deve ser muito superior. “Esses serão os corpos que foram encontrados, muitos ficarão para sempre desaparecidos naquela imensidão de edifícios destruídos”, aponta. No regresso a casa, no avião, já depois de tomar o primeiro banho numa semana, quando começou a fazer um balanço do que tinha acabado de testemunhar, a imagem de uma menina que colocou o seu corpo sobre o irmão pequenino para o proteger não lhe saía da cabeça. “Foram encontrados naquela posição, mortos”, lamenta.