O consumo excessivo de álcool entre os adolescentes e os jovens – popularmente conhecido como bebedeira – , ainda que esporádico, pode provocar alterações na estrutura e funcionamento do cérebro. Quem o afirma, em entrevista a O MINHO, é o professor Eduardo López Caneda, do Centro de Investigação em Psicologia (CIPsi) da Universidade do Minho.
O investigador, que trabalha com uma equipa de psicólogos, sustenta que as investigações laboratoriais demonstram, ainda, que este consumo “pode afetar o desenvolvimento do córtex pré-frontal implicando que processos cognitivos a ele ligados apresentem um desempenho sub-ótimo, com importantes repercussões no futuro, quer a nível académico quer a nível social ou laboral”.
Num paper na Internet, o professor diz que o consumo intensivo de álcool – binge drinking – é muito problemático na adolescência e na juventude. Como estudou o problema, qual o universo estudado e que incidência tem esse efeito na juventude portuguesa?
A população alvo dos nossos estudos é, efetivamente, a adolescência e juventude. O motivo para estudarmos pessoas nesta faixa etária deve-se, essencialmente, a dois fatores: o primeiro relaciona-se com o facto de este fenómeno apresentar uma alta prevalência entre os jovens e adolescentes. Assim, de acordo com relatórios europeus tais como a ESPAD ou o Eurobarometer, estima-se que um em cada cinco alunos portugueses com 16 anos tenham tido consumos tipo binge só nos últimos 30 dias, número que ascende a 28% dos alunos quando são considerados jovens que têm entre 14 e 26 anos.
O outro aspeto que veio sublinhar a necessidade de investigação sobre os efeitos do binge drinking na população jovem relaciona-se com os primeiros estudos em modelos animais, os quais mostraram que ratos adolescentes com ingestão do tipo binge experimentavam maior dano cerebral do que ratos adultos expostos aos mesmos níveis de consumo de álcool. Estes e outros estudos motivaram a nossa equipa e outros laboratórios de diferentes partes do mundo a investigar os efeitos deste padrão de consumo no cérebro humano, nomeadamente o cérebro adolescente e jovem.
Mas o que é o binge drink?
Na atualidade, consideramos que uma pessoa apresenta um padrão de consumo tipo binge quando ingere pelo menos 5 bebidas (4 no caso das mulheres) numa única ocasião, dentro de um intervalo de 2 horas e com uma frequência de pelo menos uma vez por mês.
O binge drink afeta apenas estudantes, do secundário e da universidade, ou os jovens em geral?
O binge drink é um fenómeno transversal que afeta não apenas os estudantes mas também os jovens que não fazem parte já do sistema educativo. No entanto, não está claro qual destes grupos (estudantes e não estudantes) apresentam percentagens de consumo tipo binge mais elevados, sendo que alguns estudos mostraram maiores níveis de binge drinking nos jovens universitários, enquanto outros trabalhos indicaram que este padrão é maior em jovens não universitários. Estas dados sugerem assim que o binge drinking é um fenómeno que transcende as diferenças educativas nesta faixa etária, afetando os jovens de forma geral.
O professor diz, ainda, que as investigações apontam para menor rendimento em tarefas que envolvem a atenção, a memória e funções executivas. É assim?
As nossas investigações apontam principalmente para uma redução na memória verbal a curto-prazo, isto é, os jovens com um padrão de binge drinking apresentam dificuldades na recordação de palavras previamente memorizadas, o que pode ter importantes implicações no rendimento académico.
Adicionalmente, os nossos resultados bem como os de outras equipas de investigação sugerem que estes jovens têm um menor rendimento em tarefas que requerem a inibição de uma resposta motora, o que pode indicar uma reduzida capacidade no controlo de impulsos.
Relativamente à atenção, vários estudos assinalam que os binge drinkers, de forma semelhante ao que acontece com alcoólicos, apresentam um viés atencional para estímulos relacionados com o álcool (p. ex., um cartaz com uma cerveja “fresquinha e espumante”); resultados que, a confirmarem-se, podem estar a indicar uma certa predisposição para o craving ou desejo de consumir a substância nalguns destes jovens.
E que afetam distintas regiões do cérebro.
Outro dos principais problemas do consumo excessivo de álcool nestas idades é que o cérebro adolescente é um cérebro que está ainda a maturar, não tendo ainda alcançado o neurodesenvolvimento típico da idade adulta. Assim, regiões com uma maturação filogeneticamente mais tardia – i.e., que aparecem mais tarde do ponto de vista evolutivo-, tais como o córtex pré-frontal, não atingem o seu pico de maturação até bem avançada a idade adulta emergente, por volta dos 25 anos.
A imaturidade do córtex pré-frontal, uma região fundamental para funções tão relevantes como a planificação, a tomada de decisões ou o controlo inibitório, explica parcialmente o porquê de aos adolescentes “custar-lhes” mais do que aos adultos pensar nas consequências futuras das suas ações imediatas, o que se tem relacionado com comportamentos de risco, tais como conduzir sob efeito do álcool, sexo inseguro ou abuso de substâncias.
O facto de o álcool afetar negativamente o desenvolvimento do córtex pré-frontal –tal como sugerido por alguns dos nossos estudos e os de outros grupos de investigação – pode implicar que processos cognitivos estreitamente ligados a esta região apresentem um desempenho sub-ótimo, o qual pode comportar importantes repercussões no futuro, quer a nível académico quer a nível social ou laboral.
E anomalias neurofuncionais, quais?
Podemos dizer que as anomalias neurofuncionais observadas nos jovens com consumo excessivo de álcool vão em dois sentidos. Uma direção seria a neurocompensação, isto é, um incremento na atividade de certos grupos neuronais associados a diferentes processos cognitivos (p. ex., memória ou controlo inibitório), sugestivo da necessidade –por parte dos binge drinkers– de recrutar recursos neuronais adicionais a fim de executar uma tarefa (p. ex., manter certa informação na memória ou inibir a resposta perante determinado estímulo) ao mesmo nível que um grupo de jovens com baixo ou nenhum consumo de álcool.
O outro tipo de anomalias neurofuncionais associam-se ao que se conhece como a hipótese do continuum, que estabelece que o binge drinking e o abuso/dependência do álcool são duas faces da mesma moeda. Esta ideia fundamenta-se em vários estudos que mostraram que o binge drinking associa-se a uma hiperexcitabilidade cerebral durante estados de repouso que se assemelha ao observado noutros estudos realizados com populações alcoólicas. Adicionalmente, o facto de os jovens binge drinkers apresentarem uma maior reatividade perante estímulos alcoólicos assemelha-se ao reportado nos adultos com dependência alcoólica. No entanto, são ainda necessários mais estudos que comparem diretamente o binge drinking e o alcoolismo com o intuito de determinar com precisão se, efetivamente, estas duas formas de consumo de álcool constituem duas etapas diferentes do mesmo fenómeno.
O que pensa que é possível fazer para atenuar o problema (poderes públicos e sociedade civil)?
Sendo que, tal como referido acima, o cérebro jovem/adolescente é um cérebro que está ainda em maturação e que o consumo excessivo de álcool pode alterar o processo natural de neurodesenvolvimento, parece razoável pensar que o atraso no início do consumo de álcool pode ter um importante impacto na redução do dano induzido por esta substância. Acresce o facto de se ter observado que o atraso na idade de início do consumo de álcool para depois dos 18 anos reduz em 75% a probabilidade de se apresentar um diagnóstico de perturbação de abuso/dependência do álcool, um dado que enfatiza ainda mais a importância de retardar o início do consumo.
Sabendo que em Portugal 41% dos alunos com 16 anos iniciaram o consumo de bebidas alcoólicas com 13 anos ou menos, torna-se necessário considerar novas formas de prevenção de inícios precoces no consumo de álcool, bem como fórmulas inovadoras que procurem a redução dos episódios de binge drinking e, consequentemente, a diminuição dos danos associados a esta substância.
Há algum país que tenha tido êxito nesse combate?
Um bom exemplo de fórmula bem-sucedida é o caso da Islândia. Após uma década de investigação, investigadores deste país constataram que existiam três fatores que atuavam como protetores face aos comportamentos de ingestão alcoólica, nomeadamente: adiar a idade em que os jovens começam a beber álcool (idealmente para depois dos 18 anos), passar tempo com os pais (pelo menos uma hora por dia) e fomentar atividades extracurriculares, tais como o teatro, a dança ou o desporto. Passados 20 anos desde a aplicação de medidas –alguma delas muito impopulares- que procuravam atingir estes objetivos, a Islândia passou de ter 47% de jovens (14-16 anos) que consumiram álcool no último mês para apenas 5%. Este resultado, longe de ser milagroso, deve-se à aplicação rigorosa do conhecimento científico, com base em dados recolhidos durante muitos anos e veio a sublinhar o sucesso daquelas políticas assentes na ciência e não apenas em crenças sociais ou preconceitos culturais.