Braga já teve elétricos a cruzar o ‘coração’ da cidade

Artigo do historiador Rui Maia
Braga já teve elétricos a cruzar o 'coração' da cidade
Foto: DR

ARTIGO DE OPINIÃO

Por Rui Maia

Licenciado em História, mestre em Património e Turismo Cultural pela
Universidade do Minho – Investigador em Património Industrial

O último quartel de Oitocentos marca de forma indelével a história dos transportes na cidade de Braga.

A chegada dos comboios

Em 21 de maio de 1875, é inaugurada a ligação ferroviária entre Nine e a cidade de Braga – Linha do Minho.

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Desde então, o fenómeno da ferrovia na região fomenta um conjunto de transformações sobremaneira importantes, não somente nas facilidades de locomoção que promove, mas também nas muitas metamorfoses que subsidia na economia e na coesão territorial.

Todavia, a localização da Estação de Caminhos de Ferro de Braga não parece ter sido a melhor escolha. Afastada do epicentro da cidade, suscitou desde logo um conjunto de problemas, não somente aos utentes (passageiros), mas, também, ao comércio e algumas indústrias que se deparavam com dificuldades para ali fazer chegar ou recolher as suas mercadorias.

A chegada de tão fecundo meio de transporte à cidade de Braga deu origem à necessidade de abreviar o percurso entre a Estação de Caminhos de Ferro e o coração da urbe – surgem assim as primeiras alternativas intermodais.

Os carros americanos

Passados dois anos após a inauguração dos comboios em Braga, iniciaram os trabalhos de instalação dos carros americanos, tratando-se de um meio de transporte de passageiros e mercadorias também movido sob carris – puxado pela força animal – grosso modo, por equídeos e, por vezes, por bois.

A sua inauguração ocorreu aos 19 de maio de 1877, sendo composto por duas linhas: uma delas, a primeira, iniciava na Avenida Central, atravessando a Rua do Souto, a rua D. Diogo de Sousa, o Arco da Porta Nova e o Campo das Hortas, terminando na Estação de Caminhos de Ferro da cidade.

Mais tarde, surgiu uma segunda linha que, partindo da primeira, na Avenida Central, seguia pela Rua de São Victor, dirigindo-se à Estrada do Bom Jesus do Monte e daí prosseguindo até ao Santuário.

O Funicular do Bom Jesus do Monte

Os denominados “americanos” pertenciam à Companhia Carris de Ferro de Braga. Aos 19 de março de 1883, a referida Companhia passa a denominar-se – Companhia Carris e Ascensor do Bom Jesus – devido ao início do funcionamento do Funicular do Bom Jesus do Monte. Em 1886, entrou ao serviço uma outra linha que, saindo da Avenida Central, se dirigia pela Rua dos Capelistas, Campo da Vinha, Rua dos Biscainhos, terminando próximo da primeira linha, mais abaixo do Arco da Porta Nova.

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A tração a vapor

No final da década de oitenta, de Oitocentos, a tração animal foi substituída pela tração a vapor, mais potente e célere do que a força animal.

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No entanto, o fumo, a sujidade emanada pelas máquinas, os perigos que lhe estavam associados, os acidentes que amiúde sucediam, bem como o descontentamento dos seus utilizadores, deram azo à modernização do transporte público de passageiros, com a adoção dos modernos e eficazes carros elétricos.

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A revista Ilustração Portugueza, no seu número de 2 de novembro de 1914, refere “(…) o obsoleto e horrivel sistema de tração feito em carros americanos, que os naturaes denominavam “chocolateiras” (…)” – a despedida desse meio de transporte deve ter sido efusiva, atendendo à precariedade em que se encontrava.

Os carros elétricos

Em janeiro de 1914, arrancaram na cidade de Braga os trabalhos de eletrificação de todas as linhas de americanos, levadas a cabo pela empresa AEG, através da – Thomson Houston Ibérica – tendo sido construída uma estação de recolha nas cercanias da Estação de Caminhos de Ferro, mantendo a bitola existente de 900 mm.

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Aos 18 de outubro de 1914, inaugurava‐se em Braga a tração elétrica, que substituiu de forma permanente a tração animal e a vapor – o seu grande obreiro foi o major Albano Justino Lopes Gonçalves (1863-1929) – presidente da Câmara Municipal de Braga entre 1912 e 1915.

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Todos queriam os elétricos

(…) A tração electrica foi ha dias inaugurada com exito notavel, brevemente se devendo estender esse importantíssimo melhoramento a outras terras circumvizinhas, como Barcelos, Ponte do Lima, Villa Verde, Guimarães e Gerez”.

“Uma commissão de proprietarios das freguezias de Ferreiros, Gondisalves, Sequeira, S. Julião de Passos e Cabreiros, conferenciou no passado sabbado com o digno presidente da Commissão Municipal, pedindolhe para que sua exc.a inclua no plano das primeiras linhas dos electricos a construir, o ramal que vae d´esta cidade aos limites da ultima daquellas freguezias, no Porto de Martim”.

Até a vila de Ponte de Lima se queria ligar à cidade de Braga por elétrico, tendo o seu executivo encetado um conjunto de iniciativas dirigidas ao executivo bracarense sem que, todavia, as suas pretensões fossem concretizadas.

A nova linha

Em Braga, muito perto do fim do primeiro quartel de Novecentos, inaugurou‐se uma nova linha de elétrico, há muito desejada pelas comunidades locais, ligando a Ponte de São João ao Cemitério de Monte de Arcos. A dita linha foi inaugurada aos 30 de junho de 1923, e logo demonstrou a sua utilidade.

No dia de Finados o alvoroço nos Cemitérios costuma ser grande, pelo que entre a Ponte de São João e o Cemitério da cidade, em dias da semana, o movimento gerado com a nova linha de elétrico passou a ser análogo ao do dia de Finados.

O fim dos elétricos e a adoção dos tróleis

Em 28 de maio de 1963, a história dos elétricos termina na cidade de Braga, dando lugar aos tróleis, cuja viagem inaugural partiu precisamente do centro da cidade até ao Bom Jesus do Monte. 

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Os tróleis, também movidos por eletricidade, conectados à catenária instalada, circulavam em trajetos que a própria catenária impunha. Ao todo existiam oito tróleis a circular na cidade, até serem banidos em 10 de setembro de 1979, e vendidos aos Serviços Municipalizados da cidade de Coimbra.

Braga foi a primeira cidade portuguesa a colocar um ponto final nesse sistema de transportes.

Todavia, se uma das razões evocadas que promoveu a decapitação dos elétricos tinha que ver com o seu estado obsoleto, não se compreende a não modernização dessa rede, até porque os tróleis exigiram avultados investimentos por parte do erário público português, acabando também por desaparecer nas brumas do tempo.

O BRT na cidade de Braga

Após décadas de delapidação dos transportes coletivos na cidade de Braga, particularmente, os elétricos, em pleno século XXI a cidade vê-se a braços com a necessidade de avançar com a linha do metrobus – BRT – Bus Rapid Transit – projeto esse aprovado e financiado pelo PRR – Plano de Recuperação e Resiliência – cifrado em 100 milhões de euros – contemplando duas linhas: vermelha e amarela. 

Braga já teve elétricos a cruzar o 'coração' da cidade
Imagem: DR

Todavia, vai-se ficar para já pela linha vermelha, uma vez que a IP – Infraestruturas de Portugal – solicitou à autarquia bracarense um conjunto de informações relativas à linha amarela, obrigando a autarquia a uma reprogramação do financiamento, que passa agora a ser de 76 milhões de euros, ou seja, menos 24 milhões de euros do que o valor inicialmente previsto. 

A linha vermelha, contempla uma extensão de 6,2 quilómetros, 13 estações e 10 viaturas elétricas, e vai ligar a Estação de Caminhos de Ferro ao Hospital de Braga, passando pela Avenida Imaculada Conceição, Avenida João XXI, Avenida João Paulo II, o Campus de Gualtar da Universidade do Minho até a unidade hospitalar.

A autarquia pretende reunir todas as condições que permitam diluir as dúvidas suscitadas pela IP, a fim de submeter novamente o projeto da linha amarela. 

No que à linha vermelha diz respeito, prevê-se a sua conclusão em 30 de junho do próximo ano.

Há países na Europa que nunca abateram as suas redes de elétricos, antes pelo contrário, renovaram as infraestruturas, bem como todos os equipamentos e máquinas, estabelecendo novos ecossistemas de mobilidade verde.

Portugal deve ter uma visão de longo prazo quanto às políticas de mobilidade e outras, sob pena de continuar amarrado a ciclos políticos fraturantes, que em nada servem os desígnios de um país que se quer na dianteira da Europa e do mundo.

Hodiernamente, a cidade de Braga e outras localidades de Portugal, enfrentam sérios problemas no que à mobilidade diz respeito.

O desenvolvimento da nossa rede ferroviária é evocado vezes sem conta como premente, atendendo às emergências do século XXI, como a mitigação dos efeitos nefastos da poluição atmosférica, a necessidade da utilização de transportes coletivos em detrimento dos transportes individuais, particularmente os automóveis, e todo um conjunto de outros aspetos importantes, como o transporte de mercadorias entre os vários polos industriais e os portos marítimos e, como não poderia deixar de ser, uma ligação efetiva e eficaz ao centro da Europa a ser concretizada pela alta velocidade – promovendo naturalmente a tão desejada coesão económica, social e territorial. 

“Braga poderia ser muito mais próspera, sadia, convidativa e harmoniosa, ao invés de ser uma cidade que envelhece os seus cidadãos, tal é o seu caos rodoviário”

Na eventualidade de Portugal ter dado mais atenção a políticas desenhadas no final do século XIX e na alvorada do século XX, teríamos hoje uma rede ferroviária coesa, abrangente e sobremaneira importante para o país em todos os aspetos da sua história.

No último quartel do século XX abateram-se centenas de quilómetros de linhas ferroviárias, ao passo que, em 1900, tinha sido desenhada a Rede Complementar ao Norte do Mondego, denominada de “novelo” que, entre muitas outras linhas, previa a execução da Linha do Vale do Lima, entre Viana do Castelo, Ponte de Lima, Ponte da Barca até ao Lindoso. Além disso, previa a ligação da cidade de Braga com Melgaço, passando também por Ponte da Barca e Monção – designada de Linha do Alto Minho. 

Os elétricos seriam hoje um elemento intermodal detentor de enormes vantagens e a cidade de Braga, à imagem de muitas outras urbes e regiões do país, poderia ser muito mais próspera, sadia, convidativa e harmoniosa, ao invés de ser uma cidade que envelhece os seus cidadãos, tal é o seu caos rodoviário, esperando-se, finalmente, que o desatar do Nó de Infias se adeque à realidade hodierna e ao porvir.

 
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