A gravidez de Ellen Cristina foi seguida e, aparentemente, normal. A cada ecografia que fazia, os médicos nunca lhe disseram que podia haver alguma coisa de errado com a menina que crescia no seu ventre. No Dia Mundial das Doenças Raras, assinalado neste 28 de fevereiro, conhecemos um exemplo vindo de Guimarães.
A Beatriz (Bia), nasceu em 02 de outubro de 2006. “Só na última é que me disseram que seria uma bebé pequenina, nada mais”, relembra. Além disso, tinha uma série de outras características que fizeram com que a avó materna, Aparecida Castro, mãe de quatro filhos, notasse que havia algo que não estava bem com a neta. “Peguei nela ao colo e algo de estranho me despertava, mas não sabia o que era”, conta a avó.
A pediatra, na manhã seguinte, quando passou visita, “levou-a e disse-me que ia abrir um livrinho da Bia”, lembra a mãe. A médica também percebeu que alguma coisa não estava certa com aquela pequena bebé que não tinha o reflexo de mamar, chorava muito e tinha o cabelo todo arrepiado.
Bia ficou dois dias na neonatologia do Hospital de Guimarães, até que as médicas foram ter com a dizendo que a bebé “tinha síndrome de Williams”, recorda a Ellen. “Nós nunca tínhamos ouvido falar naquele síndrome”, confessa Aparecida. “Eu pensava que só havia trissomia 21”, assume Ellen.
Às vezes é difícil diagnosticar o síndrome de Williams nos bebés
O síndrome de Williams afeta uma em cada 10 mil pessoas e, normalmente, é diagnosticado primeiro pelos sintomas e marcadores físicos: baixo peso à nascença, dificuldade na alimentação, baixo tónus muscular, problemas cardiovasculares, atraso cognitivo, personalidade extremamente sociável e inocente, hiperacusia (grande sensibilidade auditiva), baixo timbre de voz, hipercalcémia (excesso de cálcio no sangue), distúrbios do sono e rosto característico (face de gnomo) com afastamento entre os olhos, região ocular proeminente, nariz curto, boca larga e lábios carnudos.
Algumas destas características não são imediatamente identificáveis nos recém-nascidos, por isso muitas crianças com síndrome de Williams só são diagnosticadas mais tarde. No caso de Bia, a pediatra identificou logo alguns dos sinais que apontavam para esta doença genética rara. Bebé e mãe foram transferidas para o Hospital Maria Pia, no Porto, para que fosse feito o teste genético que confirma o diagnóstico. “Confirmou-se o síndrome de Williams e a Bia acabou por ficar internada no Porto durante um mês e eu lá com ela”, recorda Ellen.
Foi um período difícil, até porque Ellen tinha outra menina, a Soraia, naquela altura com três anos. “Ela também precisava muito da mãe, mas eu tive que apoiar a Bia”, lamenta Ellen. “A minha neta mais velha ficou mais com a avó paterna e eu apoiei a Ellen e a Bia”, diz Aparecida. Até ao dia em que Soraia começou a ficar inexplicavelmente adoentada, com febre e sem apetite. “Depois de a levarmos ao médico e de ele nos dizer que ela não tinha nada, pensamos que a menina devia estar a sentir falta da mãe e da irmã que ainda não tinha visto. A minha mãe levou-a ao hospital e ela ficou logo boa”, relembra Ellen.
A mãe é cuidadora a tempo inteiro
O regresso a casa não foi fácil, “até porque, nem toda a família aceitou a Bia como ela é”, diz a mãe. A relação entre Ellen e o pai da Bia terminou alguns anos depois e, segundo ela, teve muito que ver com esta dificuldade de aceitar a diferença da filha.
Ellen viu a sua vida revirada, se antes já tinha algumas dificuldades económicas, a partir do momento em que se tornou numa cuidadora a tempo inteiro e numa mãe solteira, tudo ficou ainda mais difícil.
“Eu fazia limpezas e ainda continuei durante algum tempo, mas não posso trabalhar, nenhum patrão tem paciência para alguém que está sempre a precisar de sair para tratar da filha”. A Bia pode precisar de ajuda a qualquer momento, mesmo estando na escola, porque nem sempre os profissionais estão disponíveis para fazer o que é preciso. “Cheguei a ser chamada à escola porque ela estava suja, a Bia não controla a urina e as fezes”, aponta.
As pessoas com síndrome de Williams têm problemas com a motricidade fina e podem beneficiar muito de fisioterapia e terapia ocupacional. “Quando a Bia começou a fazer terapia na APCG [Associação Paralisia Cerebral de Guimarães] eu morava em Azurém e levava-a na cadeirinha a empurrar por aquela encosta acima. Nem sabia que tinha direito ao transporte, não sabia nada”, reconhece a mãe.
Além do síndrome de Williams, Bia tem uma forma severa de epilepsia, difícil de controlar. Esta doença fez com que aos problemas que já tinha somasse uma série de outros que se foram desenvolvendo ao longo do tempo.
Com o passar dos anos, a menina foi tendo cada vez mais dificuldade de comer, até chegar ao ponto em que tiveram que lhe colocar uma sonda. “Primeiro puseram-lhe uma sonda pelo nariz e eu ficava toda a noite acordada a vigiá-la para ela não a arrancar, mesmo assim às vezes ela tirava tudo”, conta Ellen. Acabaram por lhe colocar uma sonda no estomago (PEG) e é assim que se alimenta agora.
Vão vencendo as dificuldades com amor e imaginação
A certa altura, Bia ainda foi capaz de andar com a ajuda de um andarilho, mas acabou por perder a capacidade de locomoção e agora está confinada a uma cadeira de rodas especial, onde o seu tronco fica preso para se manter direita. Em casa, passa muito tempo numa cama articulada, muito velha e demasiado baixa para a mãe lhe prestar cuidados. Em volta da cama, há umas grades que se percebe logo que não são equipamento médico, “mas foi o que arranjamos para ela não cair”.
As grades estão revestidas com tecido acolchoado, “para ela não se magoar se tiver um ataque epilético”, justifica a mãe. Cuidar da Bia é um desafio que além de amor e energia, muitas vezes exige imaginação. “Para que ela não consiga mexer na fralda e sujar-se, a minha mãe costura-lhe macacões (fatinhos como os que se vestem aos bebés)”, conta Ellen.
Para a maior parte dos problemas existem soluções que facilitam a vida a quem tem dinheiro para as adquirir, mas não é o caso desta família. “Governamo-nos com pouco mais de 500 euros, entre o que eu recebo como cuidadora informal e a pensão dela”, confidencia a mãe. A vida vai sendo possível porque vivem num apartamento de renda social, mas a casa não é adaptada para alguém como a Bia.
Quando o elevador avaria e já aconteceu de estar avariado semanas a fio, a Bia fica presa no nono andar. “Já tentei que o IHRU [Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana] me desse uma casa no rés-do-chão, mas dizem que não há”, lastima Ellen. O banho, até há pouco tempo era numa banheira, mas a Bia está a ficar pesada e a idade de Ellen vai andando, por isso pediu ao IHRU a colocação de uma base de chuveiro. O pedido foi atendido, mas com tão pouca sensibilidade que deixaram um degrau de 13 centímetros que Ellen tem que vencer com a cadeira de rodas sanitária que lhe emprestaram e que usa para dar banho à filha.
“Chegaram a dizer-me que a Bia não passaria da adolescência, mas ela está aí”, diz a mãe orgulhosa, enquanto segura a sua menina para uma fotografia, em que ela não está nada interessada. Há pouco tempo, Ellen teve um AVC e, agora, há uma inquietação que não a abandona: “O que será da minha menina se me acontecer alguma coisa?”