A comunidade migrante nortenha está convocada para uma manifestação a realizar no próximo dia 27, quinta-feira, ao começo da tarde, na cidade do Porto, junto à sede da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA). A que se seguirá uma outra em Braga, em data a marcar. Sucede que há mais de 200 mil imigrantes à espera de renovação da autorização de residência, ao abrigo dos acordos da CPLP, e que caducou em fevereiro. Deixando os migrantes com problemas no emprego (caso dos TVDE), no acesso à saúde e até na reunificação de crianças.
Priscila Corrêa é uma advogada brasileira, professora de Direito, e especialista em Direito Internacional Privado, radicada em Braga, que vive em Portugal há oito anos e centra a sua atividade no apoio aos imigrantes.
Em entrevista a O MINHO, a jurista acentua que, em Portugal, a população imigrante tem sofrido uma série de transtornos ao longo dos anos. A razão principal é a da falta de organização dos órgãos públicos para atender as necessidades e garantir os direitos desse grupo. Como se nota no deficiente atendimento dos serviços públicos, nomeadamente na AIMA.
A ‘manif’ tem a suportá-la uma petição que corre na internet, intitulada “Pedido de instauração de conferência procedimental para fins de regulamentação do marco temporal dos pedidos de autorização de residência para fins de nacionalidade por tempo de residência e outros temas”.
O MINHO: Qual a maior reivindicação dos imigrantes atualmente?
Priscila Corrêa: Posso dizer que, indistintamente, sejam brasileiros ou outros grupos migratórios, a questão que mais afeta negativamente a população migrante é a do atendimento nos serviços públicos, nomeadamente na AIMA, correspondente ao extinto SEF, e, agora, no IRN – Instituto dos Registos e Notariado, órgão que absorveu competências como as da renovação das Autorizações de Residência.
Mas, o problema não é novo, e os protestos são frequentes. Há algum fator determinante que esteja a prejudicar os imigrantes?
Sim, há. Eu sei claramente qual é e o governo também o sabe, mas prefere não agir. Ocorre que hoje, desde a transformação do SEF em AIMA, e mais ainda após a criação da Autorização de Residência CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), o desrespeito para com esses cidadãos tem chegado a níveis extremos. Cito, como exemplo, a situação de mais de 200 mil pessoas, que aderiram à autorização de residência da CPLP, e que, após um atraso de mais de dois anos na análise dos pedidos de residência, ou seja, o que se apelida de “manifestações de interesse”, estão hoje com os empregos ameaçados pois não conseguem exercer plenamente os direitos que a própria Constituição portuguesa e a lei de imigração lhes garante.
Pode dar um exemplo?
Os situações de infração à lei são as mais diversas, mas, em especial, podemos citar o caso das crianças que são filhas de imigrantes da comunidade CPLP, isto é, todas as pessoas que fizeram a transição dos pedidos de residência pelo Artigo 88 e 89 da lei, não conseguem reagrupar os seus filhos. A ferramenta disponível desde o fim de janeiro último, simplesmente ignora essa população.
Acresce que o Estado vira as costas a um grupo de pessoas que é invisível aos olhos da cúpula do Governo. Vejam que essas pessoas são justamente aquelas a quem o Estado deveria prestar a máxima proteção, por serem oriundos de nações cuja população tem base na cultura portuguesa. Não se trata de uma simples reparação histórica, mas sim de respeito pela igualdade e dignidade da pessoa, direito dos mais relevantes, e protegido pela Constituição.
Prestes a perder o emprego
Já no que toca à população adulta, o problema é ainda mais sério. Muitos desses imigrantes encontram-se na iminência de perder o emprego, ou mesmo de serem impedidos de exercerem a atividade profissional cuja legalidade depende de uma residência válida. É o caso, por exemplo, dos motoristas TVDE, que correm o risco de serem excluídos da plataforma onde trabalham por falta de residência válida, tamanha é a burocracia no processo de renovação. O decreto 109/2023, que supostamente prorrogou as residências simplesmente não é aceito nas plataformas de TVDE, e os motoristas estão bloqueados, impedidos de prover o próprio sustento e de suas famílias.
Mas há mais: para os CPLP mesmo com a prorrogação da autorização de residência por meio de decreto, o ente privado, nomeadamente empresas, tem como política interna não aceitar documento cuja validade expirou, as plataformas de viagens só apenas a ponta do iceberg, já há muitas empreiteiras a recusarem imigrantes CPLP temendo as autoridades de fiscalização do trabalho, como é o caso da ACT, que não aceita para muitos efeitos essa residência vencida.
Migrantes com “vida cada vez mais difícil”
Como é que o Estado tem respondido a essas reclamações dos cidadãos?
A vida de um imigrante está cada vez mais difícil por conta dessa incoerência dos órgãos estatais, que adotam protocolos de atendimento distintos para situações idênticas, facto esse que já foi abordado pela Provedora de Justiça em recente relatório, divulgado em 2020, com 25 recomendações relacionadas com o atendimento nos serviços públicos pós-pandemia. A Provedora Maria Lúcia Amaral alerta que deve ser aferido o tempo real de espera pelo atendimento, considerando as filas de espera e as chamadas não atendidas.
Mas, e ainda que esses relatos sejam reais, o que vemos é um crescente movimento migratório. Como analisa a situação?
É verdade que a imigração cresceu. É verdade também que Portugal favorece a vinda de imigrantes. Mas de nada adianta uma política de “portas abertas”, sempre a estimular a imigração, se a Administração Pública não consegue ser minimamente eficiente com os que aqui já estão.
As necessidades dessa população não podem ser ignoradas, são pessoas que produzem riqueza para o país, correspondem a 15% da recolha de impostos, mas que, como retorno não têm a mínima proteção.
A manifestação convocada para o Porto, junto à sede da AIMA, tem como um dos principais propósitos o de provocar uma “conversa” entre os imigrantes e os órgãos estatais, não somente para tratar da questão da CPLP, mas de outras tantas de elevada relevância que têm causado essa rutura na confiança dos imigrantes com o Governo. E, essa ‘manif’ não será a única, haja vista que alguns grupos estão a organizar evento idêntico na cidade de Braga, reduto de um número expressivo de imigrantes, principalmente os brasileiros.
Imigração é “mais-valia”
Mas reconhece que a vinda massiva de imigrantes para Portugal tem feito crescer a reação da população contra essa minoria?
Eu vejo com maus olhos essa polarização nefasta contra a população imigrante, cuja atividade promove o crescimento do PIB nacional. É preciso acabar com o discurso de que os imigrantes atrapalham o país, a imigração regular é uma mais-valia para Portugal, principalmente no setor de serviços, seja pela oferta de mão-de-obra, seja pela criação de novos postos de trabalho, promovidos pela massa de imigrantes investidores que escolhem Portugal para construírem novos negócios que têm gerado relevante crescimento económico. E mesmo esses muitas vezes sofrem com os problemas não solucionados pelos órgãos públicos.
Quais as soluções que defende para melhoria do quadro?
Na petição pedimos para sermos ouvidos, que os órgãos principais de prestação de serviço público se apresentem para o diálogo, construindo medidas efetivas e não apenas paliativos sem conteúdo legal mínimo, como foi o caso da CPLP. Precisamos de ações sérias e não de migalhas.