Nos inícios dos anos 50, um dos grandes nomes da fotografia portuguesa do século XX, Artur Pastor (1922-1999), retratou todo o esplendor da feira de Barcelos, uma das maiores e mais antigas do país. Homem de imenso(s) talento(s), não só fotografou como escreveu para a revista “O Mundo Ilustrado” uma cuidadíssima reportagem em que exalta “a maior mostra regional que é susceptível de ver e admirar, todas as semanas, em Portugal”.
Esta quinta-feira, 8 de abril, a feira de Barcelos volta a funcionar na sua plenitude – durante o confinamento continuaram-se a vender os produtos alimentares – esta quinta-feira, dia 8 de abril. É, atualmente, uma feira necessariamente diferente daquela que Artur Pastor documentou, mas que preserva a diversidade, grandiosidade e riqueza cultural.
A propósito, O MINHO revela várias fotografias que Artur Pastor tirou à feira de Barcelos e que reportam à referida publicação em “O Mundo Ilustrado”, na sua edição de maio de 1953, com a autorização do Arquivo Municipal de Lisboa, que desde 2001 detém o espólio do fotógrafo.
“Feira atraente, de sorridente colorido”
“A duas dezenas de quilómetros da vetusta Braga, por verdejante e magnífica estrada surge-nos, em painel de encantamento, Barcelos, altaneiramente debruçada sobre o seu Cávado maravilhoso”, assim começa a reportagem de Artur Pastor para “O Mundo Ilustrado”, citada pelo jornal “O Barcelense” e consultada por O MINHO no sítio do Arquivo Municipal de Lisboa.
Naquela publicação, com “quatro páginas dedicadas à tradicional e importantíssima Feira das Cruzes”, ganha especial relevo a feira semanal. O autor salienta que é “a Barcelos centro da vida regional, através da sua abundante e variada feira semanal, uma das mais importantes do País” que se apresenta “como introdução às fotografias” publicadas.
E passa, então, a descrever: “Feira atraente, de sorridente colorido, ela é a primeira dos mercados minhotos, constituindo, com o mercado bracarense das terças-feiras e o de Famalicão às quartas-feiras, a trilogia mercantil que, em todo o Portugal, melhor manifesta intensa e múltipla vida regional. Na verdade, é um museu típico e polícromo da densa população nortenha, que nele expande, em características exemplares de arte rústica, sua enternecedora sensibilidade, ou, na abundância dos seus produtos naturais; a riqueza que o Minho obtém na sua terra fecunda”.
“Um mundo de barracas, a perder de vista”
A reportagem de Artur Pastor propõe um passeio que começa no templo do Bom Jesus da Cruz, “onde a devota e simples gente dos campos vem humildemente orar”, ao redor do qual se estende “um mundo de barracas, a perder de vista, só finda junto da Misericórdia e do Jardim, mancha de isolamento e frescura no bulício da feira”.
Nas primeiras impressões, Artur Pastor realça “o mercado pecuário” – que hoje já não existe – “onde a raça vacum, graciosa e decorativa, rumina tranquilamente, sobressaltada, apenas, pela ousada vivacidade dum ou outro vitelo”.
“De mistura, carros que aguardam, gentes e bois que dormem, indiferentes ao ruído, mercados de escadas e pipos, feiras dos artísticos e inspirados jugos em branco, envernizados ou alacremente pintados, e, seguidamente, vasto estendal de olaria, em genuíno e original mostruário”, escreve.
O autor destaca “a loiça de Barcelos”, que “apresenta variedades quase infinitas” – como “assadeiras, fogareiros, picheis, panelas, potes chatos, canecas, talbos e porrões, um nunca findar de exemplares típicos” – mas também “os famosos e tradicionais ‘bonecos’, de gritante colorido”. “Tudo se encontra e tudo se transaciona”, realça.
Sendo Barcelos “sobejamente” conhecido pelo seu figurado, Artur Pastor deteve-se na descrição dos ‘bonecos’ que saíram das mãos e da imaginação dos artesãos locais: “As bandas de música com numerosas figuras e ostentando fardas garridas, os bois de apito em tons castanhos e avermelhados de hastes negras ou vermelhas, e, sobretudo, o galo de Barcelos, verdadeiro ‘ex-libris’ da cidade e cuja fama corre o País”.
“Galo de Barcelos é por si só todo este Minho repleto de cor e alegria”
“Este galo, consagrado e querido pela gente minhota, comprovou a inocência, segundo reza a tradição, dum condenado, milagrosamente salvo, por Santiago, do patíbulo. Ele é por si só, toda a Barcelos, todo este Minho repleto de cor e alegria, que canta e dança como nenhum outro nos inesquecíveis folguedos das romarias”, acrescenta.
O fotógrafo e jornalista dá conta, ainda, das “singelas imagens da devoção popular nas quais se destacam as Senhoras de Fátima de manto branco guarnecido a ouro” e, mais adiante, do “mercado das varas, dos panos, tendas de mantas, ‘farrapeiras’, algodões e lãs pacientemente fiados no calcorrear dos gados ou nas soleiras das portas, linhos, ourivesarias, utilidades, e, em sugestivas colecções, toalhas de Santa Marinha de Oleiros”.
“Tudo é belo, diferente e, embora simples, comunicativo e cheio de beleza”, adjetiva, mencionando, de seguida, “os mercados de cestos, de latoaria, de rendas de crivo, de açafates de verga, chapéus de palha, e muitos outros que impossível é citar, tamanha a sua profusão”.
E para o final deixa “a abastança dos produtos da terra: frutas apetitosas e aromáticas, túrgidas de seiva, cridas pela magnificência do sol português, batatas, gorduchas abóboras, legumes, hortaliças viçosas, que mais parecem continuação dos campos verdes do Minho, etc., em generosas quantidades e seleccionados espécimes”.
“Aqui e acolá, castanhas, assadas em fumegantes fogueiras, barracas de quinquilharias, jogos de emoção, galináceos, peixes chegados da Póvoa, de escamas reluzentes em que a sardinha senão divorcia da malga de vinho verde e da broa de milho, fendida e polvilhada”, continua o texto.
“Se o forasteiro for a Barcelos, diligencie chegar nos primeiros dias de Maio”
No final da visita pela feira de Barcelos, o autor mostra-se fascinado com o que viu: “Sinfonia de movimento, de vida, sob um sol brilhante, deixa-nos entontecidos e fatigados, mas com os olhos repletos de beleza. Quando, a meia tarde, principia a debandada, ficam-nos magoadas saudades. Nasce-nos forte e crescente o desejo de voltar”.
E deixa um conselho: “Se o forasteiro for a Barcelos, diligencie chegar nos primeiros dias de Maio, quando da secular festa das Cruzes. Verá, então, a mais típica romaria minhota, o trajo regional das lavradeiras, Zés-Pereiras, feira franca, concursos, um cortejo das aldeias do Minho que é dum maravilhoso etnográfico, e, sobretudo, o fogo nocturno no Rio, deslumbrante espectáculo de luz, de rara pirotecnia, único no País”.
A reportagem é rematada com um reforço do convite: “Siga o nosso conselho, leitor. Visite a feira de Barcelos. Visite a maior mostra regional que é susceptível de ver e admirar, todas as semanas, em Portugal. Visite que se não arrependerá”.
Biografia de Artur Pastor
Artur Arsénio Bento Pastor nasceu na freguesia de Alter do Chão, distrito de Portalegre, em 1 de maio 1922, e faleceu em Lisboa, a 17 de setembro de 1999.
Aos três anos foi viver para Évora com os seus padrinhos de batismo. Depois do percurso na escola primária, ingressou na Escola de Regentes Agrícolas de Évora. Em 1942, após terminar o 7.º ano do curso de regentes agrícolas ingressou no serviço militar, sendo incorporado no Centro de Instrução de Infantaria, no quartel da Atalaia, em Tavira, onde fez o Curso de Sargentos Milicianos de Infantaria. Em 1951, concluiu o curso de regente agrícola.
Casou com Maria Rosalina da Costa Pastor, em 15 de setembro de 1954, em Braga. Logo após o casamento foram viver para Lisboa e tiveram três filhos – José Eduardo Clemente Pastor, Luís Manuel da Costa Pastor e Artur Manuel da Costa Pastor – a quem proporcionaram uma educação esmerada.
Artur Pastor começou a sua vida profissional, em 1950, na Direção Geral dos Serviços Agrícolas, em Montalegre, como regente agrícola. Em 1953 foi transferido para Lisboa, para a Direção de Serviços Fitopatológicos e pouco tempo depois para a Repartição de Estudos, Informação e Propaganda, fundando aí o arquivo fotográfico da Direção Geral dos Serviços Agrícolas do Ministério da Economia.
Muito dedicado às suas funções profissionais, foi-lhe conferido o grau de oficial da Ordem do Mérito Agrícola e Industrial. Sempre progredindo na carreira, reformou-se em 1983 como engenheiro técnico agrário principal.
Viveu quase toda a sua vida aliado à fotografia. Desde criança que desenvolveu o gosto pela atividade fotográfica influenciado por uma educação inserida na sociedade eborense onde a prática da fotografia era crescente.
Os seus primeiros registos fotográficos terão sido no início da década de 1940, sobretudo no período em que se encontrava em Tavira. A sua primeira exposição individual, Motivos do Sul, realizou-se em Janeiro de 1946, em Faro, sendo alvo de excelentes apreciações na imprensa da época, colocando-o distintamente nos meios fotográficos.
A mesma exposição esteve em exibição em Évora, em junho do mesmo ano. Desde então, participou frequentemente em salões de fotografia, em Portugal e no estrangeiro, obtendo vários prémios e menções honrosas.
Em dezembro de 1970 e em junho de 1986 apresentou em Lisboa duas grandes exposições, respetivamente, Exposição de fotografias de Artur Pastor, no Palácio Foz, e Apontamentos de Lisboa, no Palácio Galveias, nelas reiterando a sua qualidade artística na prática da fotografia.
De acordo com a biografia que consta no Arquivo Municipal de Lisboa, o seu carácter erudito permitiu-lhe ser autor de diversos textos na imprensa e publicar dois álbuns de fotografia exclusivamente da sua autoria, incluindo os textos, Nazaré, em 1958 e Algarve, em 1965.
Foi também o autor do caderno A Fotografia e a Agricultura publicado pela Direção Geral de Extensão Rural do Ministério da Agricultura e Pescas, em 1979, entre outros projetos desta instituição.
Acompanhando a evolução da tecnologia, substitui a sua incansável companheira Rolleiflex por uma Mamiya e mais tarde por uma Nikon, fazendo com esta os seus últimos registos fotográficos, a Expo98.