Conto inédito, do livro por editar «Humana seja a nossa dor – histórias de pessoas doentes e médicos de pessoas».
Abriu com lentidão a porta empenada do hospital, sentou-se no último degrau da escadaria de granito secular e deformada, moldada pelos passos humanos repetidos, marcas do tempo e das almas que por ali tinham passado.
O degrau encurvado agastado e baço era um espelho de si, acolhendo-lhe as pernas dormentes como era já velho hábito, parecendo-lhe até a pedra confortável pela familiaridade dos muitos anos de companhia; sentava-se ali de vez em quando para um breve repouso. Nessa noite, os braços pendiam desamparados, o rosto refugiado em vão nos antebraços, a imagem mental latejante do desespero da família enlutada pelo doente que lhe acabava de escapar das mãos a atormentá-lo intermitentemente.
As batalhas titânicas entre a vida e a morte eram invariavelmente injustas para o elo mais fraco, o elo humano, cujo calcanhar de Aquiles eram as parcas munições que se restringiam ao insignificante arsenal da medicina, armamento militar rudimentar e medieval comparado com a poderosa omnipotência das leis da vida; o milagre da conceção e a indesejada extinção inexorável na morte eram segredos a anos-luz de distância de serem desvendados pela ciência.
Não era a primeira e não seria a última vez que se sentia absolutamente desolado: esta era a única certeza indiscutível que assimilara da sua vasta experiência como médico da Unidade de Cuidados Intensivos; as restantes tinham desaparecido lentamente com o passar dos anos.
A vida pessoal era vivida em part-time e mesmo assim incompatibilizada com a vida profissional vivida a tempo inteiro, incluindo incontáveis feriados, vésperas de natal e passagens de ano, muitos aniversários dos filhos nascidos no verão e tantas vezes celebrados sem a sua presença por ser impossível trocar um turno com um colega; tirar férias em época alta era uma miragem rotativa.
O casamento de décadas ficara soterrado algures entre os escombros da relação demolida na forte implosão provocada pelo abalar dos alicerces, resultado previsível após sucessivas discussões estrondosas ao longo dos anos. Era impossível para ele lidar com a cobrança implacável da esposa em constante exigência para que cumprisse minimamente os horários e rotinas da família; talvez ela tivesse razão, mas os corações que falhavam de repente e que exigiam a sua presença eram muitos e para trás ficava o seu, mirrado pela falta de amor. Algum dia iria tratar da sua felicidade, esse dia que nunca mais chegava.
Estava irremediavelmente embrenhado nas perdas dos outros, o grito vibrante pela incredulidade do luto alheio a atravessar-lhe o seu tímpano, a manter-se latente no ouvido interno e a acordá-lo a meio da noite, deixando-o ensurdecido pelo ribombar uivado dos decibéis.
Não era transferência de emoções, estava totalmente convicto; não era vontade de desistir, estava totalmente convicto; não era obsessão pelo trabalho, estava totalmente convicto (ou talvez não).
Colado à pele do médico especialista em Medicina Intensiva estava o homem, os cinco sentidos do ser humano eram gémeos siameses do profissional.
Por isso, depois de uma esforçada tentativa de reanimação, a adrenalina que lhe circulava nas veias a ser simultaneamente injetada ao seu doente, intercalada por massagens cardíacas e choques do desfibrilador, quando a máquina emitia de novo o inequívoco som de apito rítmico do batimento cardíaco sincronizado e no monitor a linha uniforme de estrada retilínea esboçava de novo as curvas elétricas da vida, recuperava internamente o fôlego arfante de um prolongado mergulho em apneia.
E toda a equipa rejubilava em simultâneo com ele, os colegas, os estagiários, os enfermeiros, os auxiliares, um brinde comungado à ressuscitação temporária – sempre temporária, como é a vida por definição – de um ser humano no limiar da morte.
As portas da sala de espera escancaravam-se assertivas, o seu rosto esboçava uma expressão aberta a antecipar a boa notícia, a família reunida ria e chorava ao mesmo tempo, as preces ao Deus em que acreditavam tinham sido escutadas.
Quando o tempo se esboroava, quando o cronómetro ultrapassava o limiar da viabilidade do suporte avançado de vida de acordo com as últimas diretrizes de consensos médicos, executadas com o máximo rigor e num esforço concertado entre atos, fármacos e pessoas para manterem a pessoa viva o tempo tentava explicar que já não sobrava mais tempo nenhum e que nesse instante assistiriam ao segundo mistério da vida, após o primeiro que era o contacto com luz do dia ao nascer. Os olhos na hora da morte encerravam-se para essa forma de luz visível terrestre e recebiam o privilégio de se abrirem para outros espectros de fotometria em dimensões cósmicas; relativamente a esse fenómeno nenhum humano poderia com certeza delinear qualquer tipo de protocolo cientifico ou afirmação perentória da verdade, exceto presuntivas considerações filosóficas. Talvez até o ateu mais convicto vacilasse na sua última hora, quem sabe.
As máquinas eram desligadas e o ser humano devidamente coberto porque o respeito pela dignidade era um bem precioso para toda a equipa, completamente indiferente nesses minutos de turno a questiúnculas laborais, à precariedade das carreiras e a problemas pessoais. Nesse pequeno nicho de tempo que parecia enorme, os passos em câmara lenta arrastavam-no em direção à sala de espera e ele assumia a difícil missão: abria as portas com delicadeza, no seu rosto uma mistura de mímicas faciais, a neutralidade do profissional e o esgar de dor humana, nas palavras que brotavam aos poucos transmitida a irreversibilidade da notícia, palavras repetidas vezes sem conta, devagar, e depois em diferentes frases mas o mesmo conteúdo, até que os entes queridos o absorvessem, naquela primeira fase que se antecipa a todas as outras, o choque seco de chicotada, e depois a negação, a revolta, a negociação, a depressão, o luto.
A mesma linha isoelétrica no monitor, os seres humanos todos diferentes, o sentimento de perda da equipa que nunca se tornava hábito. Ali estava agora outra vez sentado, durante minutos de uma madrugada no último degrau da entrada do hospital.
Havia noites em que o céu estava espessamente nublado como um espelho sem nitidez que refletia o seu estado de espírito.
O silêncio abraçava-o como um cobertor de lã grosso e ele nunca sentia frio a essa hora, apesar dos arrepios de pele de galinha intermitentes, que sabia não dependerem da baixa temperatura exterior, mas eram fruto da sua impotência como ser humano em luta constante com a morte. Não ambicionava vencer sempre, sabia bem que não era Deus, nem aspirava à santidade. Nas batalhas perdidas, interrogava-se pelo motivo da sua persistência naquela profissão, havia momentos de árduo desespero, em que a vontade de permanecer de braços caídos era uma hipótese apetecível.
Naquela noite, porém, o céu estava invulgarmente estrelado e cintilavam brilhos dispersos como lantejoulas luminosas num manto negro. Deixou escapar uma lágrima furtiva. Fixou-se na imensidão das estrelas, e entre constelações e galáxias, observou então uma chuva contínua de estrelas cadentes. Já não era a primeira vez que presenciava fenómenos de astronomia, mas este era singular, as estrelas rodopiavam numa espécie de euforia cósmica saltitante e esboçavam um desenho no espaço: era o símbolo do infinito. De imediato um relâmpago de esperança atingiu um desconhecido ponto íntimo do seu ser, um choque elétrico de alta voltagem de energia positiva pontiaguda no peito, sem explicação fenomenológica em linguagem científica. Não era necessário no entanto qualquer tipo de explicação, tradução ou legendagem. Era algo que o impelia a continuar, simplesmente.
Levantou-se de ânimo revigorado e cumpriu as restantes horas de turno até ao merecido descanso, a alma em sintonia com o universo.
Tinha brotado em si nessa noite uma certeza da existência de outros amanhãs para os seres humanos que iam partindo do cais das suas mãos. Não a podia provar, mas não estava nada preocupado com essa falta de rigor científico. Seria o seu dogma místico, partilhado segundo diferentes pontos de vista por grande parte da Humanidade, e o consolo pacificador que essa fé impalpável e agradavelmente invasora do seu estado de espírito lhe transmitia era mais do que suficiente para seguir em frente.