Onde estava Miguel Sousa Tavares durante os tempos da troika? – Parte 2

Resposta ao artigo de Miguel Sousa Tavares (MST), publicado no Expresso, intitulado “Onde estava você durante aqueles 6ª, 6m e 23 d”

ARTIGO DE OPINIÃO

Maurício Pereira de Brito

Professor de Educação Física do Ensino Básico e Secundário

Uma das maiores dificuldades para quem escreve uma “sequela” prende-se com a preocupação de corresponder a expectativas eventualmente criadas.

Tentarei manter uma continuidade coerente nesta 2ª parte do meu artigo, Onde estava Miguel Sousa Tavares durante os tempos da troika? Parte 1”, evitando contradições e oferecendo algo novo, sabendo de antemão que não é fácil manter o interesse na leitura de um texto que necessita de ser longo, devido à quantidade de erros e inverdades do artigo que me propus contestar. 

No seguimento da desmontagem dos equívocos que Miguel Sousa Tavares (MST) comete para justificar as suas apreciações sobre o que ele diz serem as “quatro revindicações “ditas profissionais” pelas quais os professores se têm batido”, analisarei agora a terceira:

MST diz que ela é a “célebre de não terem de andar com a casa às costas”, garantindo um lugar efetivo próximo da sua residência.

Considerando-a uma reivindicação“absolutamente compreensível e legítima, mas mais complexa de resolver do que parece”, argumenta que a mesma“choca com o interesse, também legítimo, do empregador, que é o Estado: tal como sucede com os magistrados, os polícias, os médicos e outros, quando o Estado contrata, não tem obrigação de garantir um lugar onde os contratados querem estar, mas sim onde precisa deles — no caso, onde há alunos e faltam professores, e não onde sobram professores e faltam alunos”.

MST tem razão ao dizer que esta é uma questão complexa. Esquece-se, no entanto, de dizer que ela está atualmente completamente interligada com o problema da falta de professores, identificado há muito por docentes, estudiosos e pelo próprio Conselho Nacional de Educação (aconselho leitura deste artigo de opinião do Professor Carlos Ceia), problema esse que foi sendo insistentemente alimentado por pessoas como MST, através da informação errônea propagada ao longo de muitos anos sobre o excesso de professores e de um discurso que provocou a deterioração pública do estatuto profissional e social dos mesmos.

Se somarmos a isso a falta de investimento consistente por parte dos governos, na área da Educação, e de uma estratégia efetiva para atrair jovens para a docência, encontramos as razões para a atual escassez de professores.

Mas MST cai num outro equívoco extremamente curioso, que é o de utilizar o exemplo de outras profissões que, estando sujeitas a situações similares às dos docentes, os seus profissionais recebem, e bem, ajudas de custo para o efeito: é o caso dos magistrados (Regulamento n.º 379/2020, de 14 de abril, Diário da República n.º 73/2020, Série II de 2020-04-14, páginas 131 – 140) e dos médicos que aceitem  dar consultas ou fazer cirurgias numa ou mais instituições de saúde que distem a mais de 60 km do local de trabalho habitual (Portaria n.º 70/2015 de 10 de março).

Se analisarmos as soluções propostas em outros países que enfrentam o mesmo problema de falta de professores, veremos que elas estão, também, alinhadas com estas medidas aplicadas às profissões acima citadas: incentivar a permanência dos professores, através de apoio adicional, como auxílio financeiro para moradia ou transporte, além de uma imprescindível revalorização da carreira, e não soluções como a encontrada pelo atual governo, chamada de “vinculação dinâmica”.

Este novo regime de gestão e recrutamento de professores permite que os docentes sejam integrados nos quadros, à medida que acumulem o equivalente a três anos de serviço, mas obriga-os a “saltar” de escola em escola durante um período incerto.

Por que motivo não é apresentada aos docentes uma solução como a dos médicos e magistrados?  É a questão que MST deveria colocar a si mesmo, ao invés de demonstrar, mais uma vez, desconhecimento sobre o que escreve.

Sigamos agora para a última das quatro reivindicações enumeradas por MST, em que deterei a maior parte do foco deste artigo.

Diz ele que é “a contagem por inteiro do tempo de serviço, para efeitos de promoções retroactivas, dos 9 anos e tal iniciais para os tão cantados 6 anos, 6 meses e 23 dias que permanecem por contar”.

Argumentando que “em 2008 o Estado faliu e não o país”, e que devido a isso houve “várias medidas de austeridade impostas pela troika para que, entre outras coisas, o Estado não cessasse os pagamentos aos seus funcionários”, diz que “uma dessas medidas foi justamente a suspensão das progressões automáticas na Função Pública.”

Não é a primeira vez que MST utiliza os termos “progressões automáticas” e “retroativas” para criticar as reivindicações dos professores.

Ora, não existem progressões automáticas, uma vez que elas dependem do cumprimento de requisitos, procedimentos e normas legisladas. E a retroatividade diz apenas respeito à recuperação do tempo de serviço congelado, nunca à reposição de quaisquer valores que os professores tenham deixado de receber devido a esses congelamentos.

MST afirma que a perda do tempo de serviço congelado “foi a única medida que doeu no bolso dos professores e demais funcionários públicos: nenhum perdeu outras regalias, nenhum perdeu o seu emprego, nenhum sofreu um corte salarial.”

Pior, e indo ao encontro do que que escrevi na Parte 1 deste artigo sobre as comparações entre perdas e a intenção de colocar o sector privado contra o público, compara essa “única” perda com o que perdeu a restante sociedade civil “para pagar a falência do Estado”: “subida “brutal” de impostos, dezenas de milhares de empresas falidas, cortes salariais das que se aguentaram com a concordância dos trabalhadores, 300 mil desempregados, 150 mil a 200 mil emigrados, sobretudo jovens que tiveram de sair da “sua zona de conforto” do desemprego.

MST demonstra ter, também aqui, uma visão limitada, neste caso sobre o seu conceito de “Estado”. A leitura de obras como “O Contrato Social” (1762), de Jean-Jacques Rousseau1, de “A Democracia e a Educação” (1916), de John Dewey2 e de “A Condição Humana” (1958), de Hannah Arendt3, ajudam a compreender que o Estado é muito mais do que apenas um governo e os seus funcionários, mas antes um conceito cuja construção e concretização se fazem através da participação ativa de todos os cidadãos e do exercício da responsabilidade individual.

É fundamental entender que a situação económica e financeira de um país é influenciada por uma série de fatores, incluindo políticas governamentais, gestão pública, dinâmicas económicas globais e o comportamento da sociedade como um todo.

A saúde financeira e a sustentabilidade de um Estado, ainda que dependa da gestão responsável das finanças públicas e da adoção de políticas económicas adequadas, resulta também da participação ativa de toda a sociedade civil, através dos investimentos privados, da criação de empregos, da inovação e do empreendedorismo.

O contributo do setor privado nessas áreas pode impulsionar o crescimento económico, gerar receitas fiscais e promover um desenvolvimento sustentável. Portanto, é através de um esforço conjunto – do sector público e do privado – que podemos garantir a estabilidade e o equilíbrio das finanças públicas.

Avancemos, então, para a desconstrução das últimas afirmações de MST:

MST – “O Estado foi à falência em 2008”.

Não é correto afirmar que o pedido de ajuda à troika por parte de Portugal, em 2011, se deveu à “falência do Estado português em 2008”. A crise financeira global de 2008 teve um impacto significativo na economia portuguesa; no entanto, Portugal não declarou “falência em 2008”: o pedido de ajuda à troika foi realizado em maio de 2011, resultado de uma crise económica e financeira que se desenvolveu ao longo dos anos subsequentes à crise global. Portugal enfrentou, entre 2008 e 2011, dificuldades para refinanciar a sua dívida soberana nos mercados internacionais, devido a preocupações com a sua sustentabilidade fiscal e ao aumento dos custos dos empréstimos. O pedido de assistência financeira à troika foi uma medida tomada pelo governo de então para evitar uma crise de liquidez imediata e obter o apoio financeiro necessário para reestruturar a economia e estabilizar as finanças públicas. Mas quais serão os motivos que levarão MST a identificar o ano da crise financeira global como o ano da “falência do Estado”? Estará a resposta na questão que se segue?

MST – “Uma dessas medidas foi justamente a suspensão das progressões automáticas na Função Pública — o que ora está em causa —, e que se prolongaram durante 9 anos e picos, depois reduzidos para os tais 6 anos, 6 meses e 23 dias.”

MST deturpa, mais uma vez, a realidade. O pedido de ajuda à troika foi realizado em 05/2011 e terminou em 05/2014. Os períodos de congelamento (que perfazem os 9a4m2d) foram os seguintes: de 08/2005 a 12/2007 (antes até do período em que, erradamente, MST diz que “o Estado foi à falência”) e de 01/2011 a 12/2017.

Ou seja: do período total dos 9a4m2d congelados, apenas 3 anoscoincidiram com a permanência da troika no nosso país. Terá MST falado no ano de 2008 (para 2011 são “mais” 3 anos) para tentar “alargar” ao máximo um determinado período e assim melhor justificar a sua retórica quanto aos 6a6m23d que estão por repor?

Não é possível saber. Mas seria interessante descobrir em que momento MST considera que Portugal deixou de estar em falência, para que o absurdo por ele afirmado ficasse completo.

Sigamos em frente.

MST – “Mas essa foi a única medida que doeu no bolso dos professores e demais funcionários públicos: nenhum perdeu outras regalias, nenhum perdeu o seu emprego, nenhum sofreu um corte salarial…”.

Este artigo poderia ter 3 ou mesmo 4 partes, tamanha a quantidade de imprecisões e falsidades escritas por MST. Aqui ficam algumas notícias (e respetivas fontes) que provam exatamente o oposto de tudo o que é afirmado por MST:

Se teve a curiosidade de ler cada uma das notícias, deverá ter ficado tão perplexo quanto eu fiquei ao ler estas linhas de MST. Também por isso, e chegados aqui, após tantos anos de mentiras, imprecisões e manifesta ignorância demonstrada sobre a classe docente e suas reivindicações, é chegada a altura de lembrar aos leitores “onde estava Miguel Sousa Tavares durante os tempos da troika”, título deste meu artigo.

Afirmar que os funcionários públicos não perderam “outras regalias”, dizer que nenhum perdeu o seu emprego (saíram quase 80 mil; mais de 31 mil professores abandonaram o ensino) e desconhecer que sofreram cortes salariais, além de todo o restante rol de inverdades aqui elencadas, é, no mínimo, leviano, principalmente vindo da parte de quem disse não se lembrar de ter 2 milhões de euros investidos no GES, entre 2012 e 2013, através do fundo ES Liquidez do Grupo Espírito Santo.

Os dados de Miguel Sousa Tavares encontravam-se, segundo o Jornal SOL, numa das listas do Banco de Portugal, verificando-se que o mesmo terá começado a investir em Dezembro de 2012, com um valor de 80.384 euros, depois, em março de 2013, com mais 181.257 euros e, três meses depois, com outra quantia de 868 mil euros.

O quarto investimento deu-se passado outros três meses, com um valor de 875 mil euros, e, em dezembro do mesmo ano, ainda investiu 90.954 euros.

Exatamente durante o período em que milhares de trabalhadores portugueses, fossem eles do sector público ou do sector privado, sofriam na pele as imposições da troika e as opções “além da troika” do governo de então, uma casta de privilegiados pouco ou nada sofria, ao mesmo tempo em que outros, como MST, tinham investimentos feitos em alguns dos bancos que, esses sim, faliram e necessitaram da ajuda do Estado, ou seja, de todos nós. 

Curiosa é também a (contínua) falta de memória de MST sobre a existência de um contrato-promessa, antes de agosto de 2014 – oito meses antes da derrocada do Banco Espírito Santo – para a compra de uma casa em Alcântara, em 2015, ao Novo Banco, no valor de 1,2 milhões de euros.

Segundo a Sábado, MST referiu que “o banco estava à rasca para vender”. Deixemos de lado os estranhos “lapsos” de memória de MST e avancemos naquilo que é realmente importante.

O Expresso, numa peça de novembro de 2018, afirmava que cada português contribuiu, em média, entre 2008 e 2018, com 15€ por mês, para salvar bancos, um dos quais o Espírito Santo.

Ou seja, em 10 anos, cada português, do público ou do privado, contribuiu, em média, com 1.800€. Em apenas 1 ano do período de permanência da troika, cada professor contribuiu, através das sobretaxas de IRS, do aumento da contribuição para a ADSE e dos cortes nos subsídios,com quase O DOBRO desse valor.

Ao longo desses 10 anos, com e sem troika, contanto o congelamento do tempo de serviço e com a reestruturação da carreira docente iniciada por Maria de Lurdes Rodrigues (Decreto-Lei 15/2007, de 19 de janeiro), que retirou 4 anos à esmagadora maioria dos docentes então em funções, cada professor contribuiu com valores próximos dos €25.000, em média.

Ou seja, os docentes contribuíram com um valor cerca de 15 vezes superior ao que o Expresso diz ser o que cada cidadão contribuiu. Deixo, desde já, o desafio ao Polígrafo para verificar a veracidade destas minhas afirmações.

Resumindo, para que milhares de cidadãos sem condições pudessem ficar isentos de contribuir para o descalabro dos “Bancos and Friends”, e para que outros milhares tivessem de pagar muito menos do que os referidos €1.800, os professores contribuíram com mais, com 15 vezes mais, para que uma justiça social pudesse ser feita, numa lógica de respeito pela equidade, pagando assim, pela crise, uns cidadãos mais do que outros.

Contas feitas, vamos então ao fundamental da famosa reivindicação dos professores sobre a recuperação do seu tempo de serviço congelado:

  • Decreto-Lei nº 36/2019, de 15 de março, que apresentou as justificações para a reposição de apenas 1/3 do período de tempo congelado à carreira docente e utilizou um fórmula “dita” equitativa para o efeito, traduz-se de uma forma simples: foi reconhecido aos docentes o equivalente a 70 % de um escalão tipo da sua carreira  (o módulo padrão é de 4 anos), uma vez que foi reconhecido 70% de 10 anos nas carreiras gerais (um módulo padrão de progressão corresponde a 10 pontos que, em regra, são adquiridos ao longo de 10 anos). A solução, encontrada pelo governo de então, permitiu (e bem) que as carreiras gerais da função pública vissem ser contabilizado todo o tempo de serviço congelado entre 2011 e 2017 – 7 anos -, enquanto os docentes apenas viram ser contabilizados 2 anos, 9 meses e 18 dias. Obviamente, 70% de 10 anos é muito mais do que 70% de 4 anos. Será esta uma forma justa de repor o tempo de serviço congelado às diversas carreiras da função pública? 
  • – Os professores não pedem, neste diferendo com o governo, que seja devolvido um único cêntimo do que lhes foi retirado. É falso que os professores estejam a pedir retroativos ou a devolução de qualquer valor. O que os professores apenas solicitam é que lhes seja contado todo o período em que estiveram congelados, ou seja, os famosos 9 anos 4 meses e 2 dias. Pedem somente que, depois de terem sido a classe profissional que mais contribuiu para salvar os bancos – exatamente para que a esmagadora maioria dos cidadãos não tivesse de contribuir com mais do que contribuiu -, que lhes seja reposto todo o tempo que trabalharam; o SEU tempo de trabalho e de descontos. E o argumento de que esse valor causaria a abertura de uma “Caixa de Pandora” foi sempre falso, como a própria UTAO (Unidade Técnica de Apoio Orçamental) já teve a oportunidade de esclarecer. Será esta reivindicação assim tão injusta, como alguns intelectualmente desonestos tentam fazer crer? 

Maurício Pereira de Brito


Referências

  1. Rousseau, Jean-Jacques. The Social Contract. Penguin Classics, 1762.
  2. Dewey, John. Democracy and Education. Free Press, 1916.
  3. Arendt, Hannah. The Human Condition. University of Chicago Press, 1958.

 
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