Miguel Carvalho o autor de “Amália – Ditadura e Revolução. A história secreta”, da Dom Quixote, esteve na livraria vimaranense Rimas e Tabuadas, na sexta-feira, dia 08, a apresentar o seu livro que, desde junho de 2020, já vai na quarta edição. A vinda a Guimarães do autor era uma promessa adiada pela pandemia, desde o lançamento do livro. O jornalista da Visão volta a um tema do século XX português, desta vez em registo biográfico. Em “Amália – Ditadura e Revolução”, o autor de “Quando Portugal Ardeu”, “A Última Criada de Salazar” ou “Álvaro Cunhal – íntimo e pessoal”, revela-nos a imagem de uma artista bem diferente do rótulo que lhe colaram nos dias quentes do PREC. Uma mulher que discretamente ajudou a resistência, mas que resistiu sempre a usar esses créditos, mesmo quando era atacada por todos os lados
Como é que nasceu esta investigação sobre a Amália Rodrigues?
Eu tinha um sonho, desde há muitos anos, uma fisgada que me deu, desde que o Saramago fez aquelas declarações em Paris, a dizer que houve contatos dela com a resistência antifascista, nomeadamente com o PCP e que inclusivamente houve financiamento. Logo aí, comecei a colecionar papelada. A primeira vez que penso nisto, a sério, aí por 2012/13, já tinha várias pastas de recolhas. Foi aí a primeira vez que pensei: ‘isto pode dar alguma coisa’. Depois, quando surgiu a bolsa de investigação jornalística da Gulbenkian, tive a real possibilidade de avançar. De outra forma não teria sido possível fazer toda a investigação, as entrevistas que foram necessárias.
A Amália é aqui o centro?
É, embora um dos objetivos foi também tentar contar um pouco a história do século XX português, através do seu percurso. Nós temos muito tendência para pormos as coisas sempre a preto e branco e com a Amália ainda mais. A verdade é que se fores ver tudo aquilo que se disse e foi escrito sobre a Amália ela continuou todos estes anos a ser analisada a preto e branco. Há uma frase dela, já em fim de vida, em que ela diz: “Eu era a noite e o Zeca Afonso o dia”. Ela sentia isto poucos anos antes de morrer. Eu senti que esta história estava por fazer.
Sentes que aquilo que tu descobriste põe em causa aquela realidade contada do PREC?
O que é importante para mim é esta figura, aqui está retratada em todas as suas dimensões. Ela foi alvo de insultos, de perseguições e boatos, a seguir ao 25 de abril. O que eu tentei demonstrar é que ela não pode ser catalogada, não cabe em gavetas. O que faz dela uma figura tão humana como nós! Tentei mostrar que há outras narrativas, se formos procurar os documentos.
Há duas dimensões nela que são muito importantes: em ditadura os atos clandestinos da Amália com o universo da resistência antifascista são muito vastos, são financeiramente muito significativos e são muito prolongados no tempo. Pós-25 de abril tens uma pessoa que tinha sido idolatrada durante décadas e promovida pelo regime, que sofre os maiores ataques que uma diva como ela pode sofrer. Contudo ela nunca cede á tentação de dizer, “alto olhem que eu fiz isto olhem que eu dei”. Viveu sempre com a mágoa desse tempo e morreu com essa mágoa.
A questão é, no dia 26 de abril havia muitos antifascistas em Portugal, mas o regime durou 40 anos com uma oposição relativamente benévola. Tal como a Amália, o Eusébio também andava a tratar da vida no anterior regime, ao mesmo tempo a mulher mandava dinheiro para África, para a FRELIMO. Achas que se pode fazer um paralelismo entre as duas figuras?
Em termos daquilo que eles significaram naquele contexto, acho que sim. São figuras que foram promovidas pelo regime, com uma diferença, é que a adesão do regime ao fado é muito tardia. À esquerda há quem pense que o fado sempre foi coisa de ditaduras, mas isso é um erro.
Há uma série de indivíduos que frequentam a casa da Amália e que pensamos que são amigos da dela e que durante o PREC a abandonam. Verdade?
Tens muita gente a tratar da vidinha, parecia que já toda a gente era antifascista desde pequenino. O Luís Cília, quando chega a Portugal, na primeira entrevista que dá diz: “Mas está tudo a atacar o fado! Está tudo louco?”. Ele vai buscar essa história de que ninguém falava. O resto é rebanho: “O vento está a soprar para ali? Então é para ali que vamos”. O que aconteceu foi a pequena inveja, o gajo que quer passar à frente. Vou dar o exemplo do Ary (José Carlos Ary dos Santos): a Amália ficou muito desgostosa com ele. A verdade é que o Ary não esteve tão presente como estava antes, como é óbvio, mas a Amália é um pouco injusta com ele porque em várias aparições públicas e em várias entrevistas, logo naquele período, quando a Amália é mais atacada, ele sai em defesa dela. Já não aparece é tanto lá em casa, e a Amália adorava esses mimos.
Os símbolos da portugalidade foram apagados, no pós-25 de abril, e a Amália era um desses símbolos. Há necessidade de apagar a Amália?
A questão da portugalidade é muito interessante. Fizeram-lhe a pergunta: “Mas quem é você para cantar Camões?”. Ao que ela respondeu: “Eu não tenho nada á ver com a carga nacional, a portugalidade é uma carga muito pesada para mim, eu sou a Amália ponto”, portanto, ela sempre rejeitou a ideia que vai defender Portugal lá fora.
Ficamos com a ideia de que Amália foi vivendo com alguma habilidade enganando o regime. Mas há um episódio na embaixada em Espanha em que há uma letra profundamente machista que lhe pedem para ela cantar e ela diz, “Só canto se…”
Além desse, há vários exemplos, não só em relação às músicas como também no cinema. Vários relatos das tentativas de resistir a diálogos que subalternizam o papel da mulher. Em 1943, pedem-lhe para cantar o fado da Maria Alice, que é um fado que fala numa das estrofes do papel da mulher como zeladora da honra do marido e a Amália, “Eu não canto isto”. Acabou por cantar, mas tiveram de modificar a letra.
Amália olhava para Salazar, enquanto ele era vivo, como para uma figura paterna?
A Amália convive muito bem com a ideia de alguém que vele pelo nosso destino, uma figura paternal, alguém que tomasse conta de nós. Mas Amália não era só isto! Era alguém que aparecia no relatório da PIDE como sendo uma perigosa comunista. A PIDE não estava totalmente louca. Ela percebe rapidamente como se têm de movimentar nestes meios como é que a mão esquerda faz uma coisa e a mão direita faz outra.
Como foi o crescimento dela porque a menina dos bairros pobres e a mulher madura depois, não são a mesma pessoa? Como é que ela se fez mulher?
Há um episódio que relato no livro, quando lhe fazem a última grande homenagem no âmbito da EXPO 98, acaba tudo em casa dela. Na sala está sentada gente que fala inglês, italiano, espanhol e ela está no sofá e responde em português, responde em espanhol, em italiano. Isto passa-se a um ano antes de morrer. Há quem diga que o Ricardo Espírito Santo a educou, algo disto deve ser verdade, porque ele acompanhou-a durante muitos anos. Ela torna-se uma mulher além do seu tempo pela forma de ser.
Os anos 80 trazem aqui uma série de cantores há novas fadistas. Existe um resgate da imagem da Amália?
Ela foi a primeira a ir á luta aceitava tudo para o que era convidada houve uma altura que dava, em média, 26 concertos por mês. Nessa altura aparece o Miguel Esteves Cardoso a escrever sobre a Amália, uma coisa absolutamente revolucionária, é a primeira pessoa a normalizar a Amália perante o regime democrático.
O Estado Novo é a tua época de eleição para investigar?
Não é tanto por aí. Há temas que me interessam por eu achar que estão mancos. Jornalisticamente o que me interessa, sobretudo, é saber que há um puzzle que não está completo. Se eu puder, com as armas que o jornalismo me dá, preencher um bocadinho essas lacunas a minha, missão está cumprida.