Tradutores afirmam que inteligência artificial ameaça extinguir a profissão

Debate no festival Correntes d’Escritas
Foto: Lusa

O risco da extinção da profissão de tradutor devido à evolução da inteligência artificial, que fará o seu trabalho de forma mais rentável, foi a preocupação que dominou hoje um encontro sobre tradução, no Festival Correntes d’Escritas.

“Tradução e inteligência artificial: aliados ou inimigos” foi o tema de uma mesa que juntou Clara Capitão, diretora editorial do grupo Penguin Random House Portugal, Guilherme Pires, editor, tradutor, revisor e coordenador editorial da Caixa Alta — Oficina Editorial, Sara Veiga, tradutora e revisora de texto, e Michael Kegler, tradutor e crítico literário alemão, que moderou, no âmbito de um debate dedicado à tradução, no encontro anual de escritores de expressão ibérica, que decorre na Póvoa de Varzim.

Guilherme Pires imprimiu um tom pessimista, considerando que, com o uso cada vez maior de inteligência artificial para fazer traduções, se está a “arrasar por completo a literatura”.

“Um tradutor traduz com base no passado, no seu conhecimento pessoal, na sua experiência e tenta replicar a voz do autor, é uma obra de criação autoral, por si só. A máquina escreve com base no passado, com um manancial de informação roubada a alguém antes. Além de não reproduzir a voz do autor, não constrói para o futuro. É a morte para a literatura”, afirmou.

O tradutor alertou ainda para o facto de as máquinas serem “permeáveis ao pensamento político” e deu como exemplo o “caso evidente dos Estados Unidos”, em que já se “proíbem palavras que espelham a justiça, a igualdade e o respeito”.

Num registo mais otimista, Clara Capitão lembrou que ainda se está numa fase muito inicial e que, como tudo, tem riscos e benefícios, assinalando, por exemplo, a sua vantagem na tradução de termos técnicos, já utilizada há muito tempo.

Contudo, não tem dúvidas de que a evolução tecnológica “vai exigir rigor, ética, profissionalismo e transparência de todos”.

“Os desafios colocam-se e vai depender da ética de cada empresa e profissional. A balança pesa dos dois lados. Já aconteceu entregarem-nos capas feitas com inteligência artificial e só na verificação técnica se percebeu. Na Penguin, isso não é permitido”, afirmou.

Michael Kebler perguntou que mecanismos existem “para defender dessa ameaça que existe”.

Na opinião de Guilherme Pires, a “questão contratual é importante e o escritor tem de se defender”, porque existe uma cláusula em que prescindem dos direitos autorais para a editora” e, mais recentemente, foi introduzida uma nova cláusula em que “o autor prescinde para quaisquer usos futuros”, mesmo tecnológicos, o que “serve para alimentar a máquina”.

Outras sugestões do tradutor passam pela obrigatoriedade de dar informação aos tradutores de que as cláusulas só defendem os editores, de os autores recusarem que os seus textos sejam traduzidos por máquinas ou que, nos casos em que as traduções sejam feitas com recurso a inteligência artificial, essa informação conste na capa do livro.

Um dos problemas que se colocam, na opinião de Guilherme Pires, é que “os novos leitores são menos exigentes”, o que é terreno fértil para o avanço de traduções com menos qualidade.

“Sou muito pessimista neste aspeto. Quando a máquina conseguir traduzir competentemente, a nossa profissão acabou. Sou frontalmente contra isto, mas é inevitável. Será muito mais rentável e mais rápido”, afirmou, sublinhando que “a literatura humana vence quando comparada com a maquinal” e que é por isso que, no setor do livro, têm de “estar todos do mesmo lado”.

Clara Capitão revelou que neste momento há uma “discussão quente com os agentes literários sobre inteligência artificial nos contratos sobre tradução”, embora mais aplicada aos ‘audiobooks’.

“A Penguin é muito respeitadora, não faz traduções com inteligência artificial”, afirmou, mas considerou que ainda é prematuro entrar em lutas.

“Quando as coisas estiverem mais estabilizadas, os tradutores poderão reclamar outro tipo de condição contratual. Agora é só ruído, enquanto decorre a discussão entre editoras e agentes”, disse.

Sara Veiga alertou que os tradutores são profissionais que trabalham sozinhos, que não é fácil juntarem-se para lutarem pelos seus direitos e em defesa da sua carreira, além de que a maioria “vive com a corda na garganta”, a contar com “mais uma página traduzida para poder pagar as contas”.

“Tenho dúvidas se estamos [tradutores e editores] no mesmo barco, no que respeita à inteligência artificial e a nível de contratos. Há editores que não fazem contratos nenhuns, temos zero direitos. Não temos ordenado mínimo. Gostava muito que nos conseguíssemos juntar e criar um sindicato e criar legislação. Não sei como vamos sair daqui, mas já estamos a pensar em planos B porque isto está muito mal”, desabafou.

Guilherme Pires acrescentou que há “muitos tradutores de grande qualidade que estão em ‘burnout’” e lamentou: “Há 25 anos que não se atualizam honorários dos tradutores”.

 
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