“Tolerância zero”

Artigo de Vânia Mesquita Machado

Pediatra e escritora. Autora dos livros “Microcosmos Humanos” e “Humana Seja a Nossa Dor”. Mãe de 3. De Braga.

“Tolerância zero”

Engoli em seco.

“Dez minutos para se despedir dos seus filhos” era o título, o meu cérebro dessensibilizado por breves instantes quase habituado ao constante input excessivo de notícias violentas, a chicotada que não demorou nada, a revolta a revolver o suco gástrico, uma mãe separada à força dos seus filhos.

Os meus neurónios confusos incapazes de descodificarem de imediato a mensagem expressa pelo jornal, as imagens de meninos engaiolados e privados da liberdade em centros de detenção fornecidas pelas autoridades norte-americanas a toldarem-lhes a perceção, reli a legenda. As fotografias tinham sido tiradas nos EUA pelas próprias autoridades e não por elementos americanos das NU enviados para um longínquo cenário de guerra em nobre Missão Humanitária, uma louvável tentativa de conter a hedionda violência que vitimiza milhares de crianças, epidemia incontrolável que destrói lentamente o conceito de Humanidade.

Li o artigo de uma ponta à outra e olhei para o calendário, não era dia das mentiras e nenhum jornalista brincaria desta forma, inventando uma notícia sobre mais de dois mil pais separados dos seus filhos e em que os menores eram mantidos em gaiolas de metal, com uma descrição pormenorizadamente sádica.

Uma mãe em desespero obrigada a dizer adeus aos seus filhos de dois e sete anos, dez minutos para se despedir, já não consegui engolir sequer, a boca um enorme deserto, existia uma jaula com vinte crianças dentro algures num armazém do Texas, a América a voltar ao faroeste, os criminosos todos do lado dos caras-pálidas que apoiavam a política de tolerância zero da administração de Donald Trump.

Uma mãe que implorou e que até tinha atravessado a fronteira legalmente, esse caso específico a ser devidamente explicado pelo justíssimo Presidente que seria excecional “um dos que não deveria acontecer”, quais poderiam então, que “casos” de crianças separadas dos seus pais, a gritarem prisioneiras numa jaula de metal no seu democrático país poderiam então legal ética e moralmente acontecer, o sonho americano transformado num pesadelo sem fim à vista, um Presidente de pele vermelha queimada pelo excesso de solário, de olhar talvez psicótico, (seria preferível que em vez de sociopata Trump fosse esquizofrénico, toda esta insanidade terminando abruptamente quando alguém finalmente fizesse o diagnóstico e o tentassem então tratar, pelo mundo a circularem imagens do Presidente dentro de uma camisa de força e atordoado pela injeção de um neuroléptico durante um surto alucinatório semelhante a este em que resolveu separar os filhos dos seus pais). O pedido de asilo de Maria até já tinha aceite e por isso aguardava num centro de detenção onde o processo avançava, melhor do que nunca mais ver os seus filhos, o seu coração mais calmo temporariamente porque os seus meninos estariam num “sítio onde existiam mais crianças»” e certamente que nos EUA não existiam crianças em centros de detenção, afastadas da família, longe do recreio, privadas da infância, entre elas e a vida normal uma barreira de grades a fazer lembrar o arame farpado dos campos de concentração.

“Mami não quero ir, não quero que nos separem”, Shame on you Mr. President, Meu Deus eu continuo a acreditar em Ti, quem sou eu para duvidar dos Teus desígnios, mas como simples humana imperfeita e mãe de 3 filhos confesso que preferia morrer do que deixar que se separassem de mim para sempre ou talvez não, talvez me tornasse numa qualquer criminosa e fizesse justiça pelas próprias mãos. Perdoa-me Meu Deus pelo pensamento irrefletido, aguardaria desesperada pelos meus filhos de coração exangue tal como as outras mães, de nada lhes serviria futuramente uma mãe em prisão perpétua num calabouço qualquer.

“As crianças estão a ser usadas por alguns dos piores criminosos da Terra como forma de entrar no nosso país”, o Presidente ainda a tentar alguma forma de lavagem cerebral ao seu povo e à comunidade internacional, (seriam também criminosos todos os que imigraram para a América há tantos anos, e que agora constituem o seu estimado povo americano, Sr. Presidente?).

A primeira-dama a tentar chamá-lo à razão, a odiar ver famílias separadas (a doença do presidente não era contagiosa, haja esperança), ele a ignorar o que lhe dizia a própria esposa, coração empedernido, cego surdo e mudo para a dor do outro, hipnotizado obsessivamente pelas suas alucinações, cada vez mais assustadoras.

E mesmo embalada em Skunk Anansie para que a revolta me inspirasse o cérebro, não consegui acabar o que escrevi, enquanto lia e relia a notícia do Diário de Notícias e observava incrédula as aterradoras imagens destas crianças a circularem nas redes sociais, sem chorar.

Não por estar a acontecer nos EUA, mas porque são crianças, separadas dos seus pais. E eu, não tarda nada, vou abraçar com força os meus filhos.

 
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