As crianças têm direitos mas umas mais do que outras, as crianças têm diferentes versões de serem crianças aos olhos manchados de sangue inocente de adultos maus, os adultos maus metem medo e têm cara de papões, as crianças calam por isso a dor e a revolta mas não sabem reprimir a lágrima que é revolucionária e se manifesta sem medo dos adultos papões numa onda solidária que engrossa a maré de rebeldia do vale de lágrimas do reino da injustiça.
As convenções das Nações Unidas, os pareceres da UNICEF, as recomendações da OMS, são respeitadas para as crianças que são crianças aos olhos dos governantes soberanos, são eles que decidem quem são ou não as crianças e a idade não conta, a cronologia do nascimento é uma formalidade, há seres humanos com pouca idade válidos para trabalhar, a quem a fome a sede e a doença são danos colaterais pelo facto de terem nascido em países subdesenvolvidos, são acidentes de percurso por terem tido o azar de habitarem países prósperos, afogados em petróleo e gás natural, ou soterrados por minas de ouro e diamantes, mas cujos líderes são déspotas ou crentes cegos em credos religiosos fundamentalistas e que subjugam a sua população às ideologias ou dogmas de fé em que acreditam.
Assim se passa um pouco por todo o lado, geralmente de forma encapotada porque fica mal na fotografia do Eurogrupo ou das reuniões do G8 lembrar que as crianças não são todas iguais e umas valem mais do que outras porque são europeias, mas da Europa rica, ou americanas mas da América rica, entre as crianças imigrantes nenhuma é digna de ser mesmo criança, e já são suficientemente perturbadores os desacatos com as organizações anarquistas e com as que se insurgem contra a pegada ecológica gigante, o que faltava agora era duvidar da precisa categorização das crianças na nova «Teoria da relatividade do que é ser criança», em voga nos tempos modernos agridoces do salve-se quem puder especulativo subjugado ao poderio económico, «bora lá» subornar os meios de comunicação social para que não passem essas imagens dos mendigos descalços filhos de ninguém a inquinarem as esquinas das cidades, aliás flashes que não interessa minimamente que se fixem nas retinas, podem até prejudicar o turismo e o comércio externo e um jornalista que se preze dá valor à imagem nacional, em detrimento dessa poluição visual provocada pelas pseudo-crianças que intoxicam as ruas com as suas lágrimas, e que servem apenas para um prémio fotográfico da National Geographic ou da Reuters.
Nos dias de hoje interessa renovar e ser alternativo, e a Chanceler alemã sabe bem disso, sempre na linha da vanguarda do conhecimento das melhores práticas impulsionadoras da economia germânica.
Resolveu testar uma atitude arrojada, lançando uma nova abordagem em direto televisivo da «Teoria da relatividade do que é ser criança», de tal forma new age que confundiu as cabeças pensantes de intelectuais e politólogos, incapazes de formular um comentário opinativo sobre uma atitude tão neologista.
Para a história das gaffes fica a gravação de Angela Merkel, mulher-papão disforme entalada num tailleur verde-alface vagamente evocativo da silhueta da Fiona do filme animado Shreck, que com palavras cortantes dilacerou o coração da adolescente palestiniana, ao lhe explicar em áspero linguajar bárbaro que não há lugar para todas as meninas e meninos que querem escapar à fome, à sede e à doença e que pedem refúgio para estudar, porque a Convenção dos Direitos da Criança só é válida para as crianças que são crianças e não existem palestinianos crianças.
Em direto para todo o globo terrestre a «Teoria da relatividade Merkeliana do que é ser criança» a ser testada, a Chanceler não contava porém com a força bruta das lágrimas que sabotaram os seus intentos, e em tentativa de volte face ainda se debruçou perante a palestiniana e lhe disse que alguns jovens se têm de ir embora, e que «Viver bem na Alemanha», o nome do programa cenário onde ambas estavam era apenas para as crianças crianças, um gesto desesperado de consolo grotesco, uma réplica da decadência europeia de valores, «Oh menina palestiniana olha as pombas vem não tenhas medo não, porque as pombas oh menina vêm pousar na tua mão», as pombas como praga de filme de terror, a menina palestiniana a sujar a Europa idílica com lágrimas, «chora agora menina palestiniana chora que me vou embora para não mais voltar», deseja a jovem que a Chanceler lhe diga, espécie de vudu no pensamento, a «Teoria da Relatividade Merkeliana da criança que não é criança» caída por terra, ridiculamente e aos olhos de quem quis ver.