Artigo de Vânia Mesquita Machado
Pediatra e escritora. Autora do livro Microcosmos Humanos. Mãe de 3. De Braga.
«Gerar uma criança, um negócio jurídico entre a gestante e os beneficiários, através do qual a primeira se compromete legalmente a entregar a criança após o nascimento».
Leio e releio e não vejo «sentido algum» no que está escrito, porque a meu ver transforma o milagre da vida num ato comercial devidamente legislado, numerado por um artigo de um decreto-lei, encaixado entre milhares de outros decretos e colocado banalmente à disposição de qualquer cidadão português.
Não sou beata, e afasto desta afirmação qualquer conotação religiosa ou ideológica. Imprimo-lhe a dúvida em termos essencialmente morais e éticos, algo que é inerente ao Humanismo.
Reformulo a frase: não vejo «significado humano», porque «sentido» em termos legais existe, conferindo à maternidade e a geração de uma criança o sentido redutor de uma Lei.
O que é ser humano? O que é a vida? Quando começa?
Não, não vou corrigir para «gestação», porque a maternidade inicia-se in útero, onde os laços afetivos e emocionais vão ganhando forma, paralelamente ao aumento de volume uterino, quando os pontapés do futuro bebé na barriguinha recebem espontaneamente um afago carinhoso e sonhador, quando as verdadeiras mães cantam canções de embalar e têm longas conversas com o seu filho.
Os nove meses de contato íntimo entre a mãe e o feto-embrião-bebé, são já uma parte da formação da identidade do novo ser.
Obviamente que existem exceções quando a gravidez não foi desejada, quando as dificuldades económicas ou graves problema sociais são entraves ao «estado de graça».
E muito haveria para escrever sobre o futuro dessas crianças indesejadas depois de verem pela primeira vez a luz do dia, a maioria das quais apenas vão permanecer institucionalizadas,, porque a legislação referente à Adoção, e usando termos adequados ao conteúdo do artigo, encontra-se ainda em fase embrionária…
Que bom seria que os casais inférteis as pudessem acolher e dar amor….
Assisti ao programa «Prós e Contras» da RTP1 de dia 06 de fevereiro, pelo que parte da minha opinião neste artigo reflete o seu conteúdo, cujo debate foi a meu ver uma pequena gota de água transparente caída num oceano de vagas de espuma negra, provocadas pelo derrame de um petroleiro: metaforicamente é a imagem que me vem à ideia, parece-me que o vulgar cidadão esbraceja com dificuldade entre as marés escuras de muitas das leis que são aprovadas ou submetidas a análise superficialmente no Parlamento, uma necessidade imperiosa de promulgar sem ponderação, principalmente nas que se referem a questões de natureza tão complexa como o início e o fim da vida…
Neste caso vou-me cingir à Lei da Procriação Medicamente Assistida, recentemente promulgada a sua alteração em 2016.
Como cidadã de um país democrático, não me belisca minimamente saber qual é a orientação sexual de fulano ou sicrano, uma das minhas melhores amigas é lésbica, tenho amigos também homossexuais masculinos.
É uma questão de livre arbítrio, escolhas individuais que não colidem com a liberdade dos outros, e cada um pode emitir juízos mas não pode interferir com a forma de vida de outros adultos lúcidos e psiquicamente funcionais.
No que diz respeito ao que está subjacente a esta Lei, imensas questões se colocam e existem riscos reais que põem em causa conflitos de interesses entre seres humanos, o que é inadmissível num Estado de Direito.
Foi dito nesse programa que o indivíduo é uma construção social e cultural,colocando em segundo plano o aspeto biológico e ressaltando o papel dos pais afetivos e que se responsabilizam pela criança no seio de uma família.
Concordo, mas apenas parcialmente: reafirmo que a «construção» de um ser humano se inicia no ventre de sua mãe.
A palavra «gestante» não pode substituir a palavra «mãe», porque a gravidez é uma parcela da maternidade, no mar plácido intrauterino há uma componente relacional, mesmo que e pensando friamente seja apenas unilateral, se essa mãe quiser assumir apenas o papel de gestante e doar o seu bebé. Como sabem o que pensa o bebé?
Referido também no programa que a criança sempre foi alvo de menor proteção jurídica em termos legais, embora essa vertente se tenha vindo a aprimorar nos últimos anos.
Os direitos da criança são fundamentais, são o fio condutor de uma geração futura promissora! Não entendo sequer como esta premissa pode ser posta em causa ou contornada sub-repticiamente com afirmações do género «é importante criar novas vidas e novas famílias», justificando desta forma a possibilidade da PMA ser extensível a quem dela quiser usufruir e servindo como argumento a favor da dita «gestação de substituição».
A PMA é um meio importantíssimo para a possibilidade de casais inférteis poderem ter filhos com a mesma herança genética. Completa a estrutura de um casal homossexual sedimentando a formação de uma família.
Mas como muito bem disse o Dr. José Gameiro, Psiquiatra, o crescimento saudável de uma criança necessita de duas figuras identitárias, pelo que gerar um filho sem essa premissa é uma questão muito delicada. Apenas transcrevo o que foi dito, pois não possuo elementos suficientes para afirmar que assim seja e não é essa a questão primordial que pretendo focar neste artigo.
No entanto, a questão do anonimato do dador é uma intromissão com um direito da criança, a de conhecer a sua árvore genealógica. O facto de a lei ter sido promulgada desta forma em 2009 é uma falsa questão, pois se a sociedade civil se manifestar em 2017 contra essa amputação da liberdade da criança e do futuro adulto, pode e deve ser corrigida.
Está legislada a possibilidade do conhecimento do legado genético por questões de saúde? Muito bem. Desconhecer como viveram os seus antepassados, se for a vontade expressa de um adulto e lhe for negada porque é filho de um banco de esperma ou de ovócitos, é uma omissão num direito.
Obviamente que os dadores podem preferir o anonimato, mas quem tem mais direitos, o dador ou o futuro ser?
E se em termos de «gestação de substituição», os defensores de que o vínculo biológico não é importante, então também não é importante conhecer o passado individual dos avós ou bisavós ou tios biológicos, por uma questão de completar a identidade social da história do indivíduo, mesmo que perfeitamente adaptado à sua família legal e afetiva?
Relativamente às questões jurídicas, até que ponto está realmente salvaguardado que o negócio não vai envolver uma componente pecuniária? Sérias dúvidas ficam no ar quando se fala em que «Este acordo não admite qualquer pagamento ou doação à gestante, exceto o relativo às despesas associadas a todos os procedimentos envolvidos, e tem de ser precedido por uma audição da Ordem dos Médicos e da autorização prévia do Conselho Nacional da PMA». Não será este ponto contornável, com um acordo conhecido apenas pelas partes envolvidas, ou aumentando o custo das ditas despesas associadas para convencer a potencial gestante, alguém que pode ser economicamente muito carenciada?
Quando se fala de situações tão delicadas como uma gravidez, com toda a envolvência de alterações hormonais e um longo percurso de 40 semanas, como proceder se a «gestante» mudar de ideias?
E entretanto, durante essa ligação entre a placenta e o cordão umbilical, que tem segredos que ultrapassam a componente biológica, insisto, pode surgir uma mudança de vontade da gestante que já é mãe e aprendeu a amar esse bebé estabelecendo-se uma ligação mãe filho: pode esta ser completamente anulada pelo contrato prévio em que se estipulou que a criança é entregue aos «beneficiários»?
Estamos a falar de sentimentos e emoções humanas! São legisláveis da mesma forma que um compromisso de contrato de compra e venda patrimonial de um imóvel?
Não se podem abordar levianamente questões que envolvem as Ciências da Vida.
Uma palavra sobre a necessidade de assegurar o estatuto do embrião, porque em aberto fica a possibilidade de experimentação humana, uma caixa de pandora que pode resvalar para a eugenização.
O embrião não é uma vida humana?
Excluo obviamente as questões de manipulação genética para efeitos de estudo de patologias e da procura de avanços terapêuticos, que são indispensáveis para o avanço da medicina, e não interferem com o embrião, são retirados genes de células que são depois sujeitos a experimentação laboratorial. Escolher a cor dos olhos do bebé parece-me futilidade; escolher o sexo pode ser útil para a evicção de doenças transmitidas por hereditariedade ligada ao cromossoma sexual.
Por último causa-me espécie quem tem receio de referendos, porque estes não são vinculativos mas são o espelho do que os cidadãos devidamente informados pensam sobre temas tão importantes como o início e o fim da vida…
Li algures que não são necessários referendos sobre direitos individuais.
Devo ser muito pouco perspicaz, porque não entendo o que significa esta afirmação, e não vejo como pode um referendo prejudicar a expressividade da democracia; parece-me um paradoxo sem sentido, e acrescento que lançar um debate alargado a toda a sociedade civil, com ampla informação disponibilizada a todos os portugueses, não é uma questão de teimosia partidária, mas uma imperiosa necessidade em assuntos tão importantes como os que envolvem vidas humanas., seja no seu início ou no seu termo…