Já teve um dia mau, daqueles em que parece que o mundo se uniu para o tramar? Então imagine que todos os dias da sua vida eram assim e pode ficar com uma ideia do que têm que enfrentar pessoas como Adriano Leite ou Sandra Pimenta. Ele não tem mãos, ela perdeu o uso normal das pernas tão pequena que nem se lembra do tempo em que chegou a caminhar. Os dois partilham uma enorme força para vencer a adversidade e o facto de trabalharem no Hospital Senhora da Oliveira, em Guimarães.
Adriano ficou sem a mãe muito cedo, o pai, como muitos naquela época, pôs-se a caminho do França, já que por cá não ganhava para o caldo. O menino ficou a cargo das tias, vendedoras no mercado do Bulhão. Era traquina, ainda se lhe nota o estilo travesso no desembaraço e no jeito descontraído a falar, apesar das rugas e dos cabelos brancos.
Um dia, uma travessura foi mais longe do que devia, correu mal, mesmo muito mal. Um foguete rebentou-lhe nas mãos. “Não me pergunte como, há coisas de que não me lembro. Lembro-me do antes e do depois, mas há coisas que se apagaram”.
Acordou uns dias depois no Hospital de São João. Os braços foram-lhe, ambos, amputados, abaixo do cotovelo. “Não percebi logo. Eles sabiam que eu ia acordar e estava todo ligado, só depois é que tomei consciência”.
Começava ali uma vida nova, sem uma das principais ferramentas que todos os seres humanos usam para interagir com mundo. Mas a traquinice não tinha acabado. “Corria aquele hospital todo de uma ponta à outra, ninguém me segurava. Uma altura, chegaram a meter-me gesso nas pernas para me segurar no quarto”, recorda a rir. Esteve um ano no Hospital de São João, antes de ser transferido para o Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão.
“Estive lá mais um ano. Ali é onde eles nos ajudam a fazer as tarefas com as limitações que temos”. Mas, continuava arrisco, o acidente não o desmoralizou. “Nós tínhamos as terapias em Alcoitão e a residência era em Santa Apolónia, uma altura aquilo acabou mais cedo e eu pareceu-me que já sabia o caminho, por isso, pus-me a andar.” Tinha, então, 10 anos e os braços, ainda mal treinados, serviam-lhe de pouco. Foi andando, andando… quando se apercebeu estava na marginal, junto ao mar. O Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão fica perto de onde hoje se situa o Cascais Shopping, para lá da autoestrada Lisboa – Cascais, uns cinco quilómetros até à estrada marginal.
“Era danado, uma altura peguei em dois invisuais e levei-os a passear por Lisboa.”
Concluiu que estava perdido, viu uns polícias e pediu ajuda. Os polícias acabaram por encontrar a carrinha que levava doentes à residência e acabou tudo bem. “Já imaginou o que foi a minha sopa naquele dia?” – Era um tempo em que ainda era legitimo dar uns tabefes ou uns açoites nos mais pequenos para os por na linha. “Era danado, uma altura peguei em dois invisuais e levei-os a passear por Lisboa. Como se eu conhecesse alguma coisa daquilo!”
De volta ao Porto, terminada a quarta-classe, as tias queriam que fosse pedir para o Mercado do Bulhão. Não viam que outra coisa poderia fazer com a vida um miúdo de 12 anos, sem mãos. “Fui um dia. Não fui mais, não queria aquilo, pedir não era para mim”, muda-se-lhe a expressão, de resto sempre alegre, quando fala daquele dia.
Estava certo de que havia de surgir alguma oportunidade e ela acabou por aparecer por via de uma antiga colega de escola. Telefonista numa empresa de calçado. Mas, podia um homem sem mãos ser telefonista? Lembre-se que estávamos no tempo em que os telefones eram de discar e que a roda tinha uns orifícios à medida do dedo indicador. A resposta é: podia e foi.
Adriano é capaz de tarefas, com um coto e uma pinça, que os médicos fizeram com o que restou do antebraço esquerdo, absolutamente incríveis aos olhos de qualquer pessoa. Desde logo, escreve com rapidez e com uma caligrafia invejável.
Foi assim que, há 30 anos e quatro meses (tem tudo de memória porque já conta anos para a reforma), entrou para o Hospital de Guimarães, passando num concurso. O Hospital fez um excelente negócio, confirma Valentina Trigo, responsável pela Gestão de Utentes e, nessa qualidade, chefe do telefonista. “Venham mais”, responde a responsável quando se lhe pergunta se trabalharia com mais deficientes no seu setor.
Tudo corria lindamente até ao momento em que, naquela região, houve um surto de poliomielite
Sandra Pimenta, nasceu em Nova Lisboa (agora Huambo), Angola, em 1970. O pai era militar e conheceu a mãe naquela cidade da antiga colónia portuguesa, quando estava a cumprir o serviço militar. Formaram família e assentaram por lá, nasceu a pequena Sandra e tudo corria lindamente até ao momento em que, naquela região, houve um surto de poliomielite. “Eu até já tinha a primeira dose da vacina, mas a doença apanhou-me naquele intervalo…”
Sandra já caminhava, embora hoje não tenha recordações desse tempo. A doença causou-lhe paralisia dos membros inferiores e obrigou a uma série de intervenções cirúrgicas e a uma recuperação no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, bem longe da casa da família, em Angola. Tal como no caso de Adriano, a Centro foi a sua casa durante um ano.
A independência da colónia e a guerra que se seguiu acabaria por ditar o regresso de toda a família a Portugal. Sandra perdeu, em grande medida, o uso das pernas, caminha apoiada em muletas, mas isso nunca foi desculpa para nada. “Os meus pais sempre me educaram para fazer tudo o que os meus irmãos faziam. Se era para cozinhar, cozinhava. Nunca houve proteção especial”, recorda. Ainda hoje, defende que a autonomia que tem é fruto dessa educação. “Se era para ir para a rua brincar ao elástico, eu também ia. Não podia saltar, segurava o elástico.”
Foi nessa filosofia que, quando chegou a idade foi tirar a carta. Não podes conduzir com os pés, conduzes com as mãos. Foi para Braga, “que naquela altura não havia nenhuma escola com carro adaptado em Guimarães”. Foi e orgulha-se de dizer que passou o exame à primeira.
“O meu objetivo, primordial, era ser independente”, lembra. Tirou o Curso Técnico-Profissional de Secretariado e esforçou-se por ter uma boa nota. A aplicação nos estudos garantiu-lhe um estágio no Hospital. “Escolhi aqui porque sabia que ia ter dificuldades no mercado de trabalho”, confessa. “Ainda cheguei a ir a entrevistas, eramos 15 ou 20 pessoas e nós temos que ter consciência que há ideias pré-concebidas. Os empregadores pensam que estas pessoas não aguentam, que vão faltar mais vezes ao trabalho, que vão estar mais vezes doentes. Isto não corresponde à realidade, mas sabemos que entre nós e outra pessoa, o empregador vai escolher a outra pessoa.”
Passou-lhe pela cabeça oferecer-se para fazer estágios não remunerados. Sentia-se confiante e pensava que se pudesse mostrar o seu valor não teriam dúvidas em contratá-la. “Acabou por não ser preciso, porque abriu um concurso para o Hospital. Eu já tinha tido aqui uma experiência de estágio e acabei por entrar no concurso.”
Sandra reconhece que este emprego, como funcionária pública, lhe deu a segurança de que precisava para conseguir tudo aquilo que queria: a autonomia. Aos 29 anos, tinha um apartamento e um carro e vivia sozinha, sem depender dos pais. Adriano, apesar de ter trabalhado numa empresa privada, antes de entrar para o quadro do Hospital, também concorda que a segurança foi muito importante para sentir confiança para constituir família e ter uma filha.
Sandra começou pela farmácia do Hospital e “não foi fácil”. Ainda nem tinha começado a trabalhar e a responsável pelo serviço questionou: “não sei se será aqui o seu lugar?”
Acabou por ficar à experiência, uma semana. O trabalho implicava caminhar de um lado para o outro, não apenas ficar sentada a uma secretária. O certo é que a semana passou e a responsável acabou por reconhecer, “agora já não estás à experiência, é mesmo para ficar.”
Hoje continuam amigas e depois de a farmacêutica ter saído do Hospital mantêm-se em contacto, não ficaram rancores pela falta de confiança inicial. “Sempre soube que tinha que provar mais que os outros.”
Depois de 29 anos, podia relaxar um pouco, mas nunca acontece. “Sai da farmácia porque queria trabalhar por turnos, queria ter a experiência”. A nova colocação, na Urgência, também implica andar para trás e para a frente. “Achavam que não era adequado para mim, à primeira vez não consegui”, estavam a protegê-la, mas ela voltou a pedir. “Voltei a pedir e acho que provei que consigo fazer o trabalho.” A responsável pela Gestão de Utentes, Valentina Trigo, está perfeitamente convencida.
“Não existe qualquer diferença entre estes profissionais com deficiência e os outros. São profissionais excelentes, desempenham as funções de forma exemplar. Não vejo nenhuma diferença, esqueço-me até que elas existem”, assegura Valentina Trigo. “Jamais me passaria pela cabeça, se fosse tomar café com o Adriano, tirar-lhe o café, nem me lembro disso. Eles são pessoas capazes, autónomas.”
Ressalta a oportunidade que estas pessoas tiveram de mostrar do que são capazes. Valentina Trigo reconhece que à primeira vista parece inacreditável que uma pessoa, sem mãos, opere uma central telefónica com tal desembraço ou que o expediente tenha o andamento que tem nas mãos da Sandra. “Depois de vermos não há dúvida nenhuma”.
“Na Gestão de Utentes, onde reunimos tudo o que é atendimento ao público, temos seis elementos com deficiência. Venham mais, são pessoas que dão sempre o melhor de si, altamente disponíveis e, na minha opinião, fundamentais em qualquer organização”, remata Valentina Trigo.
O que é evidente nestas duas histórias é que ao azar inicial, se opôs depois um momento de sorte, quando conseguiram a colocação num organismo público, que lhes deu a segurança que lhes permitiu prosperar. Contudo, são ambos pessoas com uma força interior transbordante, que talvez não tivessem conseguido atrair para si esse momento de sorte de não tivessem essa força.