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O SEF-Serviço de Estrangeiros e Fronteiras investiga 37 casos de tráfico de pessoas, no caso, 149 aspirantes a jogadores de futebol trazidos ilegalmente da Argentina, do Brasil, da Colômbia e da Nigéria, por falsos agentes desportivos. E já constituiu 43 arguidos, a maioria dirigentes de clubes de futebol, por suspeita de crimes de tráfico de pessoas, falsificação de documentos, auxílio à imigração ilegal e burla.
Em entrevista a O MINHO, o presidente do Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol (SJPF), Joaquim Evangelista fala nas denúncias criminais e disciplinares, nas medidas já tomadas pela Federação Portuguesa de Futebol e em reuniões mantidas com vários órgãos ministeriais. E lembra que está em causa a dignidade de cidadãos estrangeiros em Portugal.
O Sindicato dos Jogadores denunciou o caso de um grupo de 25 argentinos que vieram para Portugal trazidos por falsos agentes de futebol e viveram em condições muito difíceis. Como está esse caso?
O caso em questão diz respeito a um recrutamento massivo de jovens argentinos que vieram para Portugal com a promessa de um contrato profissional na AD Oliveirense SAD, sociedade desportiva que veio a ser declarada insolvente e encerrada. O número de estrangeiros era tão elevado que, objetivamente, o clube não conseguiu inscrevê-los a todos e foi, então, que o investidor, Sebástian Diericx, terá encontrado como solução, através dos seus representantes em Portugal, o envio de um grupo destes jogadores para o GD Mirandês, do distrital de Bragança. O caso, entretanto, ganhou dimensão pública. Além de terem sido ouvidos pelo SEF, corre termos uma ação laboral patrocinada pelo sindicato, em que os atletas reivindicam os seus direitos.
O caso Álvaro Dionísio
O site da FIFPRO fala no drama do Álvaro Dionísio, mas diz, também, que haveria situações idênticas com atletas trazidos para Portugal a partir do Brasil, da Colômbia e da Nigéria. É assim? Esses casos também estão a ser investigados?
Sim, o Álvaro Dionísio foi um dos jogadores que de forma corajosa aceitaram dar a cara e contar a sua história, é importante ter rostos num problema que muitas vezes passa ao lado da opinião pública. Com a paragem das competições devido às medidas impostas pelo estado de emergência, durante a pandemia, os problemas agravaram-se. Jogadores estrangeiros, de várias nacionalidades, foram simplesmente abandonados à sua sorte. Este é um problema estrutural do futebol português e nos últimos anos tem-se intensificado, em especial nas competições inferiores e com menor visibilidade, como é o caso do Campeonato de Portugal e escalões distritais. Somos confrontados com histórias absolutamente dramáticas, jogadores que pagam na origem a recrutadores para ter uma oportunidade de jogar futebol na Europa, outros que são iludidos com a falsa promessa de se tornarem profissionais, acabando por encontrar condições muito diferentes das que foram prometidas na origem. Além de se endividarem, assim como às suas famílias, muitos acabam por ficar numa situação de grande fragilidade por entrarem de forma irregular em território nacional. Vários clubes prestam-se a ser autênticas “barrigas de aluguer”, colocando-se nas mãos de agentes ou investidores que raramente dão a cara quando as coisas correm mal. Também temos registado casos de contratos de trabalho simulados e falsificação de documentos. As origens dos jogadores são diversas, mas Brasil, Argentina, Colômbia ou Nigéria, são algumas das nacionalidades que mais temos encontrado, talvez por serem países onde existe muito talento e jovens dispostos a arriscar tudo por uma oportunidade na Europa.
SJPF paga voos de regresso
Perante situações como esta, o que fazemos normalmente é contactar os serviços da embaixada e saber se existe uma forma eficaz de repatriamento, quando o jogador não tem manifestamente condições de permanência em Portugal. Não criamos ilusões a estas pessoas que em muitos casos não têm condições para se tornarem futebolistas profissionais. Na falta de resposta adequada, garantimos a estadia e alimentação e já suportámos muitos voos de regresso, articulando depois com o sindicato do país de origem outros apoios. O nosso departamento jurídico fica normalmente mandatado para seguir com as participações criminais e disciplinares, na tentativa de obter o ressarcimento dos danos que foram causados aos jogadores. Recentemente, fizemos um protocolo com a SOS TSH, rede regional de apoio a vítimas de tráfico de seres humanos de Lisboa e Vale do Tejo, um instrumento de apoio muito importante aos jogadores que vítimas deste crime. Temos procurado apoio de organizações como esta, que têm na sua matriz a assistência a vítimas deste tipo de esquemas.
Pensa que os ‘agentes’ envolvidos e os clubes que beneficiaram devem ser penalizados? Como?
Independentemente da qualificação jurídica e do tipo de crime ou infração disciplinar em causa, é preciso educar as pessoas e punir com celeridade os infratores. Os dividendos são, em primeiro lugar, dos recrutadores, quase sempre falsos intermediários, não registados na FPF e, por isso, não habilitados a exercer a atividade em Portugal. Recebem dinheiro para fazer esta ponte com um dirigente e clube nacionais. Os dirigentes de clubes, geralmente de escalões inferiores e âmbito regional, acabam por aceitar por beneficiar da atividade de jogadores estrangeiros com custos diminutos. Se por sorte um destes atletas se afirmar desportivamente e for transferido para outro clube ou liga de maior dimensão, todos lucram. Felizmente, temos tido uma colaboração muito saudável com as embaixadas, as autoridades policiais e o SEF, no sentido de identificar e pedir colaboração imediata na investigação destes casos. É fundamental que os procedimentos criminais, depois da queixa, se desenrolem com celeridade, para afastar um certo sentimento de impunidade que ainda existe.
Avanços nos regulamentos
Alguns avanços, perante propostas do sindicato, foram, entretanto, conseguidos. Hoje, o regulamento disciplinar da FPF prevê que dirigentes e clubes possam ser sancionados por violação de deveres de cuidado, ainda que o jogador estrangeiro se encontre a treinar no clube sem ter sido inscrito. Quando se participe disciplinarmente esta situação de irregularidade de um estrangeiro a treinar num clube, inscrito ou não, confirmada pelo auto lavrado pelo SEF, o dirigente pode ser punido até 2 anos de suspensão da atividade. O mesmo para o agente registado como intermediário, que pode perder a sua licença. Tudo isto no âmbito disciplinar, sem prejuízo do enquadramento criminal. Além disso, a FPF passou a impedir a inscrição de amadores em situação irregular no país, mesmo com manifestação de interesse apresentada, uma tentativa de combater aqueles casos de estrangeiros que entram com um visto de turismo e a quem é “arranjado” um contrato simulado só para efeitos de apresentação de manifestação de interesse no SEF e posterior inscrição. O atleta amador tem de apresentar título de residência válido ou visto para exercício de prática desportiva amadora. Em qualquer dos casos, reforço, a grande revolução carece do empenho das autoridades judiciais nos procedimentos criminais, temos infelizmente processos de inquérito parados há anos.
Governo preocupado
Fala-se já na criação pelo Governo de um grupo de trabalho. Em que consiste, quem o integra e quais os objetivos? O Sindicato participa?
Face ao aumento do número de casos denunciados ao sindicato e à manifesta dificuldade em dar uma resposta às pessoas afetadas, o Sindicato dos Jogadores convocou o governo, através da Secretaria de Estado da Juventude e Desporto, que promoveu já duas reuniões de trabalho, a última com representantes do Sindicato, da Federação Portuguesa de Futebol, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Alto Comissariado para as Migrações, Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e da Justiça e Gabinete da Secretária de Estado da Ação Social. Pretendemos, em conjunto, definir melhores procedimentos e propor medidas a implementar no terreno, que ajudem a combater estes fenómenos ilícitos, a punir severamente quem os promove e, sobretudo, a proteger as vítimas, dar-lhes assistência humanitária e dignidade durante o período em que permanecem no nosso país. Por muito boa vontade e espírito de missão que tenhamos, reconhecemos que o sindicato, sozinho, não tem capacidade para resolver todos os problemas que lhe são reportados. Dessa reunião já resultou, felizmente, a partilha de informação sobre aquilo que cada entidade e ministério pode acrescentar para a resolução do problema, no âmbito das suas atribuições.
Tráfico de seres humanos
Para além deste caso em concreto dos ‘falsos agentes’, que outros casos detetou o Sindicato que tenham prejudicado jogadores de futebol com ilegalidades?
O crime mais grave e exigente do ponto de vista da prova e respetivos pressupostos legais é o do tráfico de seres humanos. É o caso do jogador que é seduzido e trazido com uma proposta de trabalho e quando chega vê-se dominado, obrigado a viver em condições indignas, apesar de treinar e jogar ao fim de semana, quando por exemplo lhe é retido o passaporte e impedido ou limitado o contacto com familiares para dar a aparência de que está tudo a correr bem, privado do salário que lhe foi prometido. O auxílio à imigração ilegal é um tipo de crime, apesar de tudo, mais comum. Pune quem favorecer ou facilitar a entrada de um estrangeiro em situação irregular com intenção lucrativa. O exemplo paradigmático de alguns angariadores que encorajam os jogadores a viajar com o visto de turismo e em Portugal alguém lhes arranja um contrato de trabalho para regularizar a situação no SEF. Encorajam o jogador a fazer tudo da forma mais rápida, fácil, mas também ilegal, aproveitam e beneficiam da sua entrada irregular para fazer dinheiro. Não existe um domínio tão marcado sobre a liberdade de determinação da pessoa. Nem sempre é fácil traçar a fronteira entre estes tipos de crime. Destacamos, ainda, os contratos simulados, a falsificação de documentos, prestação de falsas declarações quer ao SEF quer a FPF, e a burla a jogadores que chegam a Portugal e por e simplesmente não têm ninguém para os receber, pagaram na origem por uma ilusão, tudo o que lhes foi prometido não existe.
Documentos forjados pelos ‘agentes’
Como referi, acontece muito ser dito ao jogador estrangeiro que vai assinar um contrato de trabalho ao chegar a Portugal, mas esse documento só irá servir para apresentação no SEF e / ou entidades desportivas. Na realidade, o jogador não vai auferir o salário convencionado, acabará por pagar para ter a oportunidade de representar um clube. Nas situações mais graves existem recrutadores que forjam documentos alegadamente subscritos pelos clubes para “seduzir” o atleta. Também começam a surgir casos de atletas estrangeiros a quem os recrutadores ou dirigentes nada resolvem do ponto de vista formal (obtenção de NIF, NISS, e respetivos registos nas finanças e segurança social, por exemplo), chegam a ter o desplante de registar estes cidadãos na plataforma do SEF (SAPA) com números de identificação de outras pessoas. Estamos a falar de um fenómeno complexo e que se pode desdobrar em múltiplos crimes.