“Quando queremos deixar algo de nós o jornalismo não basta”

Rodrigo Guedes de Carvalho apresentou em Cerveira o seu mais recente romance
Foto: Gil E. Lago / O MINHO

A cerveirense freguesia de Gondarém foi o mote para Rodrigo Guedes de Carvalho ter estado este sábado na Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira por altura do segundo dia da Festa da Leitura e Feira do Livro do concelho. Gondarém é um dos protagonistas geográficos de “Matarás um Culpado e Dois Inocentes” o último dos dez romances já publicados pelo jornalista e escritor que escolheu para um dos palcos do enredo entre Portugal e Galiza a freguesia de Vila Nova de Cerveira. E sobre o título, e tal e qual nas obras do escritor, no fim deste texto saberão a razão do mesmo. 

Perante um auditório da biblioteca a apinhar, Rodrigo Guedes de Carvalho (1963, Porto) começa por esclarecer que depois de “Cuidado com o cão” precisava de “territórios novos”, e de um livro “já não autobiográfico”.

“Tinha a necessidade de voltar ao norte, sou de Matosinhos, saí aos 18 anos para estudar, tenho mais anos de Lisboa que do Porto”, mas nunca perdeu essa essência do Norte, como identidade e vivência.

“Há algo que não sai de nós, há um ciclo que se está a fechar”, sublinha referindo-se a esse caminho literário que tem percorrido.

“Essa família tinha de ser do Porto, da Foz, é uma família da pequena/média burguesia”, conta. E depois desagua tudo ali em frente à Ilha da Boega, àquela aldeia cerveirense, terra de “contrabandistas”, que a salto ganhavam a vida para contornar a pobreza ditada pela ditadura, e terra de “segundas habitações” com muitas histórias de veraneio. E palco para a trama familiar, e não só, deste livro. Mas só o facto de Gondarém ser protagonistas neste romance parece já obra de um romance. 

”Não sabia que existia mesmo uma terra Gondarém”

Foto: Gil E. Lago / O MINHO

Então vamos lá ao “argumento” de Gondarém.

“A geração do meu pai e do meu avô era de uma geração com uma segunda casa aqui, sempre tive essa ligação, essa presença, essas recordações”, começa por dizer o autor.

Rodrigo brinca com a possibilidade de se ter “encontrado” com Gondarém através do “Tinder” mas não anda muito longe. Não foi propriamente a aplicação móvel para encontros mas a metáfora digital serve para explicar a chegada de Cerveira como “casa” desta obra.

“Fui ao Google Maps (serviço de geolocalização do servidor Google) pesquisar. Tinha de ser uma casa longe do Porto, para sair dessa área, mas não muito longe para se fazer essa distância num dia”, caso a história necessitasse, esclarece. “E tinha de se circunscrever ao Minho”.

Foto: Gil E. Lago / O MINHO

Mas a história fica melhor com certos antecendentes que levaram a Gondarém.

“Tenho uma afeição muito grande pela Foz do Douro e lá há uma Rua de Gondarém, especial para mim, e uma Rua do Crasto… Quando estou na minha busca deparo-me com Gondarém, não sabia que existia”.

Descobriu depois in loco ser uma “terra pequena mas não isolada”. Como já havia escrito para a sua história! Era aquilo que calçava na luva da ficção. Gondarém cumpria as expectativas. Depois cumpriu ainda mais: “Pela tipologia era perfeita, e ficava em frente á Ilha da Boega…”. E Cerveira era perfeita para fazer “uma intersecção com Espanha”. E a realidade supera ainda mais a ficção: Já não bastava existir mesmo Gondarém, como a aldeia tinha uma Rua do Crasto!  

“Na Guerra dos Tronos apareceu o dragão e desliguei logo a televisão”

Foto: Gil E. Lago / O MINHO

Rodrigo Guedes de Carvalho é mediaticamente mais conhecido por ser o rosto dos noticiários da SIC, mas como o próprio explicou foi antes escritor que jornalista.

“O meu gozo é o de contar uma história, os jornalistas escritores foram em algum momento jornalistas, o jornalismo é uma antecâmera para contar estórias. Arturo Perez Reverte, o escritor espanhol que foi repórter de guerra, disse: “A certa altura quando queremos deixar algo de nós o jornalismo não nos basta”, lembra o jornalista português.

“No jornalismo estamos limitados pelos factos. Não se pode ir mais além, e pensámos, preciso de mais, mais coisas para contar, e criamos personagens. Nem sonhava ser jornalista e já escrevia. E nunca tive o sonho de ser jornalista, aconteceu”, esclarece Rodrigo o escrito, e Guedes de Carvalho o jornalista. 

Foto: Gil E. Lago / O MINHO

Sobre o seu estilo, considera-se contemporâneo, “do presente”, com “coisas do agora”, perguntas e respostas, “considerações, da contemporaneidade”. E assinala: “Preciso do universo contemporâneo, gosto de transmitir às pessoas coisas com que elas se identifiquem, personagens em situações concretas”. Por isso: “Comecei a ver “A Guerra dos Tronos”, até aparecer o dragão, aí desliguei a televisão, gosto de ficção mas sobre coisas concretas”.

No seu livro, explica que há um concerto de uma nova revelação da música, Zeca Afonso, e isso aconteceu, mas as duas irmãs que assistiram ao concerto são ficcionadas. E em “Matarás um culpado por dois inocentes” a ficção já estava escrita antes de ser real. “O incrível é que vim a Gondarém e Gondarém é tal e qual como eu descrevi no livro, as ruas, o cemitério, lindíssimo…”.

“Orgulho-me de já ter sido insultado por PSD, PS, Bloco, PCP….”

Foto: Gil E. Lago / O MINHO

Na sua obra, como no seu íntimo, RGC diz que “tudo está relacionado com o Norte”. Por isso não tem nada a esconder e o Norte será sempre uma causa fácil. “Porque é natural, diz, nem necessita de declarações de interesse: “Estou á vontade. Orgulho-me de já ter sido insultado pelo PSD, PS, Bloco, PCP, e também Benfica, Sporting e FCP….”.

A sua “independência” é tal que: “Sempre que vou ao Porto dizem-me que já só falo á lisboeta e em Lisboa nunca deixei de ser um gajo do Porto”. 

Mas o amor ao Norte ainda não se converteu numa aura literária: “Não sei se algum dia conseguirei escrever sobre o Norte, a luz, as manhãs, muitas coisas que ainda não sei descrever…”.

“Sou um orgulhoso português”

Foto: Gil E. Lago / O MINHO

A trama do recente livro tem também Espanha, ou melhor; a Galiza, como protagonista do romance. Tal como o Minho, a Galiza chama pelo autor. É como um íman. “Tenho enorme orgulho em ser português e habituei-me a gostar da Galiza. São espanhóis mas praticamente são portugueses, a Língua, e a musicalidade da Língua, é praticamente igual”. 

Mas destaca que continua a ser muito português: “Tenho um fascínio por D. João II, é uma figura mítica para mim”. E ainda se surpreende como conseguimos, sendo um pequeno recanto na Europa e no Mundo, ser uma nação.

“Quando olho para o mapa não é normal Portugal ser um país independente, é um acidente, mas hoje sou um orgulhoso português”, destaca.

Foto: Gil E. Lago / O MINHO

Sobre o processo do livro, esta “saga familiar”, como gosta de dizer, reflecte o que a criatividade lhe vai pedindo. “Faço os títulos muito cedo, as “Cinco Mães de Serafim” instala logo a curiosidade, é baseado nessa realidade da família da foz”. E as suas ficções têm sempre algo de verosímil: “Tinha um amigo que tinha três irmãs, fui buscar a este meu amigo esta discrepância verosímil. Ele considera cinco mães porque ele nasce tarde e convive com as irmãs e a mãe adultas, são cinco mães, isto desperta logo a curiosidade”.

Depois é um processo: “Depois pensei, ok e agora como isto se joga – há sempre os pequenos grandes segredos das famílias”. E a família é sempre uma fonte quase inesgotável argumentativa, mas no entender de Rodrigo Guedes de Carvalho nunca se aprofunda o bastante: “A família é a única coisa que não escolhemos, e isto sempre me fez questionar porque nos filmes de família nunca era abordado da forma para fazer questões”. E relata um episódio de infância: “Um dia disse á minha mãe que não gostava do tio Zé, irmão dela, e fiquei logo com sentimento de culpa, mas a minha mãe calmamente disse-me: deixa lá, eu também”.

“Há escritores que não sabem acabar os livros”

Foto: Gil E. Lago / O MINHO

O autor teve um hiato de cerca de dez anos na escrita: “Tive uma década parado por pertencer á direcção da SIC, não sou feito para isso”. “Perdi a liberdade de criar”, diz, não por imposição mas por falta de tempo. “Sequei no ponto de vista criativo”, recorda. “Quando regresso, era um escritor diferente”, explica. “O Pianista de Hotel inicia a minha segunda fase – já pareço o Picasso (ri-se)”. Nesta outra “fase” como gosta de dizer, Guedes de Carvalho sublinha que agora “o mistério das personagens é maior”.

Rodrigo explica um pouco como o tricot das obras se processa: “Diz-se que ás 30 ou 40 páginas é que se vê se há livro, ou já há qualquer coisa, ou desiste-se daquela ideia”, conta.

“Eu ás 40 páginas decidi o título”. Porque para o autor o livro é muito a sua conclusão, ou melhor, como a trama se conclui. Decidiu que apesar de ainda nem um terço estar escrito o final iria ser aquele. “Notei que há escritores que não sabem acabar os livros, não acabam os livros em grande, e eu tento já saber como vai ser o fim”.

Recorda que nos «Cem Anos de Solidão» nem queria acreditar naquele final: “lembro-me de acabar o livro e ter insultado o Gabriel Garcia Márquez!”. A plateia ri.

Foto: Gil E. Lago / O MINHO

Apesar de a escrita ser criatividade, não basta, há método, e mais importante, disciplina: “Escrevo só da parte da manhã e no mesmo horário, é como um emprego. Nem sempre a musa está lá, às vezes são vinte páginas, outras nem dá quase para uma, mas temos de estar lá, com a história, com as personagens”.

“Agora Israel vai matar dois inocentes por um culpado”

E não é só o final da obra que tem de espantar: “Sou preocupado com os finais dos capítulos, posso terminar um capítulo mas o dia de escrita não acaba sem começar outro, para ter uma gancheta no dia a seguir”. Rodrigo Guedes de Carvalho, que costuma acabar os noticiário televisivo com o “foi o país e o mundo”, refere que por estes dias se emocionou com o acontecimento do momento: “Estou emocionado com a morte do Papa”. Sumo Pontífice que admirava: “No dia anterior (à morte), ele falou e eu disse á minha mulher, lá está ele, – com mais uma daquelas tiradas assertivas, e no dia seguinte emocionei-me outra vez, com a notícia que ele faleceu…”.

Sobre o trabalho de jornalista, de repórter, no terreno, foi questionado se tem saudades disso. Gostava de estar em Roma por estes dias? “Já não sinto necessidade dos directos, há muito sacrifício, muito tempo em directo, ao sol, para actualizar quase sempre o mesmo, agora chegam tantas pessoas, já chegaram mais tantas, e é sempre o mesmo, é um trabalho necessário, válido, mas já não tenho muitas saudades disso”.

E tal como em um romance, desvenda-se agora o final, enunciado no início deste texto. Rodrigo Guedes de Carvalho explica o título da sua mais recente obra: “Quando os meus colegas deram a notícia do massacre do Hamas no festival de música em Israel eu disse: “Agora, Israel vai matar dois inocentes por um culpado”. 

Foto: Gil E. Lago / O MINHO

Sobre o autor

Rodrigo Guedes de Carvalho teve a sua primeira obra publicada, intitulada “Daqui a Nada”, em 1992. Hoje tem já 11 obras sendo a última este “Matarás um culpado e dois inocentes”. É ainda autor de argumentos cinematográficos – “Coisa Ruim” e “Entre os Dedos”.

Do livro

“Dizem que a irmã mais velha comunicava com os mortos, a seguinte entendia os loucos, a terceira falava com os animais. E a mais nova passava os dias a ajudar quem precisasse. A tragédia levou-as em Abril de 1974, numa noite em que os lobos uivaram sem parar. Uma delas desaparece e as outras três são encontradas mortas. Durante cinquenta anos, ninguém consegue assegurar se se tratou de suicídio colectivo ou se foram assassinadas. E é quando a pequena localidade de Gondarém prepara uma homenagem às filhas da terra que chegam,…”.

 
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