Os Celos. A fabulosa história da banda de Barcelos que há 50 anos tocou em Vilar de Mouros

Festival mais antigo do país celebra 50 anos
Primeira formação dos Celos, na década de 60. Foto: DR

Há 50 anos realizava-se na aldeia de Vilar de Mouros, em Caminha, o primeiro festival de música moderna em Portugal. A encabeçar o cartaz dois nomes estrangeiros, Manfred Mann (sábado, 7 de agosto) e Elton John (domingo, 8 de agosto). Mas do alinhamento constava ainda a nata da música portuguesa da altura – como os Sindicato (de Jorge Palma), os Quarteto 1111 (de José Cid e Tozé Brito), os Pop Five Music Incorporated ou os Pentágono (ex-Turma 6, de Braga). E entre os conjuntos portugueses estavam também Os Celos, de Barcelos, como o nome deixa antever.

Cinquenta anos depois, Francisco Pimenta do Vale, cofundador do grupo, não esquece aquela experiência única que, ainda em ditadura, marcou Portugal de uma forma profunda, levando cerca de 30 mil pessoas à aldeia minhota que deu nome ao festival organizado pelo médico António Barge.

“Um festival com a grandiosidade, o impacto e os conjuntos que teve – Manfren Mann e Elton John, que estava numa fase inicial de carreira mas já era conhecido – é inesquecível”, sublinha a O MINHO.

“E a possibilidade que nós, Os Celos, tivemos de ombrear com os melhores conjuntos portugueses e mais esses dois estrangeiros, não posso esquecer. Como é evidente, fica gravado para sempre na memória”, acrescenta Francisco Pimenta do Vale.

“Éramos dos melhores conjuntos do Norte”

Manfred Mann encabeçava o primeiro dia do festival e Elton John o segundo. As bandas portuguesas tocaram nos dois dias. Eram elas: Pop Five Music Incorporated, Psico, Pentágono (iam atuar com Paulo de Carvalho, mas este desistiu), Sindicato, Quarteto 1111, Contacto, Objetivo e Os Celos.

O convite para o conjunto barcelense tocar no “Woodstock português”, como ficaria conhecido, deixou Os Celos “muito surpreendidos, sinceramente”, recorda Pimenta do Vale. “Porque não estávamos nos melhores conjuntos portugueses. Estávamos nos melhores do Norte, onde já éramos muito conhecidos. Tínhamos atingido um bom nível e até Coimbra éramos conhecidos”, nota.

Cartaz do festival

“Foi uma surpresa receber um convite daqueles. Perguntaram-nos se estávamos interessados e nós agarrámos com duas mãos, como é evidente”, conta o ex-baixista, recordando que o convite partiu do próprio António Barge.

Sobre o organizador do festival, Pimenta do Vale considera que era “um homem, digamos assim, para a frentex naquele tempo, um aventureiro”.

“Arriscar-se a fazer um festival daquela envergadura naquele tempo, estamos a falar de 1971, não é uma brincadeira. E com aquela amplitude. Era uma pessoa simpática, afável, de trato fácil”, lembra.

“Esgotou tudo, era tanta gente, tanta gente”

Com 30 mil pessoas a acorrerem a Vilar de Mouros, num evento inédito, os relatos dão conta de filas sem fim, falta de comida – que esgotou em toda a vila. Francisco Pimenta do Vale confirma que “havia falta de tudo, até de dormida para as bandas que iam atuar”.

“O que nos tinham dito era que haveria alojamento para toda a gente”, recorda, mas não terá sido assim e Os Celos acabaram por dormir em duas tendas que tinham levado. Nada que estragasse a experiência dos músicos de Barcelos: “A noite foi tão longa de música, e tão boa, que o dormir foi secundário”.

“Mas que esgotou tudo, isso esgotou, era tanta gente, tanta gente. Aliás, a maior parte das pessoas fizeram os últimos 10 quilómetros para chegar ao festival a pé. Não havia os acessos que há hoje. Os acessos eram uma estradinha alcatroada, mas muito estreita. Não havia parques de estacionamento. Puseram uns autocarros para levar pessoas, mas não chegavam para aquela data de gente”, conta.

Deep Purple e Pink Floyd no alinhamento 

Em relação ao(s) concerto(s) dos Celos – pois atuaram sábado e domingo, como todos os outros portugueses -, Francisco Pimenta do Vale recorda que correram muito bem, tendo o conjunto tocado versões de Blood Sweat and Tears, Deep Purple, Chicago e Pink Floyd.

Francisco Pimenta do Vale a tocar com Os Celos em Vilar de Mouros, 1971. Foto: DR

Tocar versões era o habitual na época, pois os conjuntos viviam de tocar em bailes. Os Celos tinham “dois ou três originais”, mas o forte eram as versões, que para os bailes iam muito além do rock. “Não havia concertos nem festivais. Tínhamos um reportório de 60 ou 70 músicas, mas até virinhas e tangos e modas tínhamos. Tínhamos que tocar de tudo”, contextualiza o cofundador dos Celos.

“E esses bailes tinham determinadas épocas. No verão era os clubes de praia e hotéis, depois havia a passagem de ano, o Carnaval e a Páscoa”, acrescenta. “Onde é que íamos tocar a uma aldeia?”, questiona de forma retórica, recordando “a mentalidade nesse tempo”.

Nesse sentido, a pior experiência foi na aldeia de Venda Nova: “Fomos tocar porque nos disseram que era uma festa de finalistas, senão não tínhamos ido”. Era afinal uma festa popular. O público não percebia o que o conjunto de Barcelos estava a tocar e os músicos, no final, até estavam receosos de ir cobrar o cachê. Mas lá foram e acabaram surpreendidos com as palavras do pároco, que era o organizador das festividades: “Quando vos contratámos, sabíamos qual era o tipo de música que tocavam. Vocês vieram intencionalmente, para mostrar a esta gente que há coisas que eles nunca ouviram nem viram”.

Vilar de Mouros foi “o ponto de partida”

Regressando a Vilar de Mouros, o festival foi, portanto, a primeira experiência do género em Portugal e um abrir de mentalidades e portas. “Foi o ponto de partida do que temos hoje”, considera Pimenta do Vale, lembrando o grande mediatismo em volta do evento. Nesses dias, Os Celos desdobraram-se em entrevistas a vários meios de comunicação, entre as quais, sublinha, para o programa de rádio Zip Zip, com Fialho Gouveia e Carlos Cruz.

“A música portuguesa começou a profissionalizar-se a partir daquele festival”, avalia. E exemplifica: “Acontecia sempre – e ainda se manteve algum tempo – marcar-se um baile para as dez e o conjunto nunca aparecia antes das onze. E ali [em Vilar de Mouros] não, o concerto era às quatro, era às quatro. E isso foi impecável”.

José Manuel Pimenta do Vale (já falecido) a tocar com Os Celos em Vilar de Mouros, 1971. Foto: DR

O primeiro festival de Vilar de Mouros encerrou com Elton John “vestido de palhaço pobre”, conta Pimenta do Vale, que se lembra “perfeitamente” do espetáculo, porque o assistiu no próprio palco. “Se não atuámos mesmo antes dele, fomos os penúltimos a atuar, e eu fiquei ali no palco a ver a atuação. Por isso, ainda me recordo bem de como ele estava vestido e tudo”, recorda Pimenta do Vale, cinquenta anos depois de um marco histórico na música nacional. “Estávamos no céu”.

O festival de Vilar de Mouros voltou a realizar-se em 1982 e em 1996. Depois, a partir de 1999 passa a acontecer anualmente até 2006. Regressou em 2014 e mantém-se até aos dias de hoje, embora as edições de 2020 e 2021 tenham sido adiadas para o próximo ano devido à pandemia.

As duas fases dos Celos

Já os Celos acabariam a sua atividade em 1974, após 12 anos de atividade, devido às vidas pessoas e profissionais dos seus elementos.

Em 2012, o autor destas linhas contava, no jornal de música Rock Rola em Barcelos, distribuído com o Jornal de Barcelos, a história até então quase desconhecida dos Celos, cuja carreira dividiu-se essencialmente em duas fases: a embrionária, na década de 60, e a mais experiente e arrojada, nos 70’s.

Joaquim Matos (guitarra solo), Domingos Ferreira (vocalista), José Manuel Pimenta do Vale (baterista), Francisco Pimenta do Vale (viola ritmo) e Sérgio Teixeira (baixo) compuseram a primeira formação. Desta, apenas permanecem vivos Francisco Pimenta do Vale e Domingos Ferreira.

Depois juntou-se-lhes durante algum tempo Mário Rodrigues (teclado), mas, entretanto, o baterista saía para ir combater na Guerra Colonial e era substituído por Justino Martins. Sérgio Teixeira também abandonou o grupo para cumprir o serviço militar. Foi então que Francisco Pimenta do Vale passou para o baixo e, para o seu lugar de guitarrista ritmo, entrou José Carlos Encarnação. Ainda nesta primeira fase, Justino Martins deixou o conjunto e o vocalista Domingos Ferreira passou a acumular as funções de baterista.

Os Celos na segunda fase da banda, na década de 70. Foto: DR

Mais tarde, Encarnação deixou a formação, que ficou reduzida a quarteto. Depois de uma paragem de alguns meses, em 1970, José Manuel regressa do Ultramar com “ideias novas” e os Celos dão início a uma nova fase com os elementos originais, Joaquim Matos, Domingos Ferreira, Francisco Pimenta do Vale e José Manuel Pimenta do Vale, e o ‘recruta’ Mário Cerqueira (teclado). Logo a seguir, Domingos Alves (saxofone e flauta) completa a formação.

Nesta segunda fase, com o regresso de José Manuel do Ultramar a banda faz um grande investimento na aquisição do melhor material que havia na altura: guitarras e baixos Fender, órgão Hammond, bateria Ludwig e amplificadores Sound City.

Na sua terra Natal esgotaram o Theatro Gil Vicente e chegaram a juntar cerca de quatro mil pessoas no Pavilhão Municipal. Quando iam tocar a outras cidades, levavam muitos seguidores atrás.

O último concerto dos Celos aconteceu em novembro de 1974, numa festa de S. Martinho de beneficência para o Gil Vicente, no Pavilhão Municipal de Barcelos. E também esse espetáculo foi histórico, porque com eles tocou Pedro Osório que, na altura, trouxe consigo um baixista que se estreava ao vivo e que dava pelo nome de… Herman José. E que tocou com a viola baixo emprestada por Francisco Pimenta do Vale.

 
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