Onde estava Miguel Sousa Tavares durante os tempos da troika? – Parte 1

Resposta ao artigo de Miguel Sousa Tavares (MST), publicado no Expresso, intitulado “Onde estava você durante aqueles 6ª, 6m e 23 d”

ARTIGO DE OPINIÃO

Maurício Pereira de Brito

Professor de Educação Física do Ensino Básico e Secundário

Este texto pretende ser uma resposta ao artigo de Miguel Sousa Tavares (MST), publicado no Expresso, intitulado “Onde estava você durante aqueles 6ª, 6m e 23 d [artigo para assinantes]. Mas não apenas. Pretende elevar e relembrar os princípios e obrigações de quem opina na comunicação social além de tentar deixar claros os motivos das reivindicações dos professores.

A liberdade de escrevermos sobre um assunto deve obrigar-nos a estar informados, de cumprir com o dever de isenção e de respeitar a verdade. E MST parece disso esquecer-se quando escreve sobre a classe docente.

Comecemos então por tentar resumir o que MST pretende dizer no seu artigo. Num estilo sobranceiro que lhe é sobejamente reconhecido quando opina sobre os professores, tenta passar a mensagem de que os mesmos sofreram menos do que a maior parte da sociedade durante o período em que estiveram com o seu tempo de serviço congelado; logo, que as suas pretensões são injustas perante a restante sociedade civil.

Vamos, para já, deter-nos nesta sua posição, esquecendo momentaneamente as imprecisões e erros factuais que MST utiliza para justificar a sua lógica.

Foquemo-nos neste ponto: será injusto ou imoral lutarmos pelos nossos direitos, por aquilo que perdemos, tendo em conta o facto de outros terem perdido mais do que nós?

John Stuart Mill1, considerado por muitos como o filósofo de língua inglesa mais influente do século XIX, defendia que o que importa é a maximização da felicidade geral, ou seja, que cada indivíduo tem o direito de buscar a sua própria felicidade e lutar por aquilo que considera importante, e que isso é compatível com o objetivo de promover o maior bem-estar possível para a sociedade como um todo.

Para Immanuel Kant2, um dos principais pensadores do Iluminismo, a ética é baseada na ideia de agir de acordo com o dever moral e no respeito pela dignidade humana, em que cada indivíduo tem o direito de perseguir os seus próprios fins e objetivos desde que não viole princípios morais universais.

Jean-Paul Sartre3, um dos principais expoentes do existencialismo, enfatizava a liberdade individual e a responsabilidade de criar significado em nossas vidas, defendendo que cada pessoa é responsável pelas suas próprias escolhas e ações, independentemente das experiências ou circunstâncias dos outros.

E Friedrich Nietzsche4, um dos maiores pensadores do século XIX, defendia a perspetiva de que cada indivíduo tem a capacidade de ir ao encontro dos seus próprios objetivos e de determinar o seu próprio valor, enfatizando a importância da afirmação da individualidade e de lutarmos por aquilo que é importante para nós.

Ou seja, alguns dos maiores pensadores da nossa história dizem que a justiça não deve ser medida pela comparação de perdas, mas antes pela consideração das experiências individuais e da importância pessoal atribuída a essas perdas: cada indivíduo tem o direito de almejar a recuperação do que perdeu e de lutar por aquilo que é significativo para si. 

Deixemos, portanto, de lado esta visão limitada que MST demonstra ter sobre o direito de batalharmos pelas nossas próprias metas e objetivos e concentremo-nos no que, a mim particularmente, mais me preocupa: as inexatidões, inverdades, erros e omissões que ele utiliza para justificar a sua retórica, mas não sem antes repudiar uma narrativa, repetida vezes sem fim em vários artigos de opinião e intervenções televisivas, que pretende colocar trabalhadores do sector privado contra os trabalhadores do sector público.

A igualdade, a justiça, a dignidade, o reconhecimento, as contribuições para o bem comum e a interdependência são razões que levam à necessidade de respeitarmos todos os trabalhadores da mesma forma. Esses argumentos são apoiados por diversos pensadores, tais como John Rawls5, filósofo político e teórico da justiça, cujo trabalho mais conhecido é a  obra “Uma Teoria da Justiça5“, Martha Nussbaum6, uma das mais reconhecidas filósofas dos Estados Unidos da atualidade, e mesmo Adam Smith7, filósofo e economista escocês do século XVIII, considerado o pai da economia moderna e o mais importante teórico do liberalismo económico.

Todos realçam a importância de uma visão abrangente e inclusiva sobre o valor do trabalho e da contribuição de cada indivíduo na sociedade: os trabalhadores do setor público fornecem serviços essenciais, como saúde, educação e segurança, enquanto os do setor privado impulsionam a economia e a inovação.

Respeitar ambos é reconhecer a importância das suas contribuições para o bem-estar coletivo, daí que o frequente discurso divisionista de MST, que busca colocar um grupo contra o outro, ignora as noções fundamentais de como uma sociedade deve funcionar de forma harmoniosa.

Devemos reconhecer a interdependência desses setores e valorizar o papel desempenhado por ambos os grupos, de forma a promover uma sociedade mais equilibrada e na qual todos os membros beneficiam das contribuições e realizações uns dos outros.

Sigamos então para os graves erros que MST comete para justificar as suas opiniões sobre as reivindicações dos professores.

De forma a tornar mais fácil para o leitor a compreensão das inverdades escritas no seu artigo, optarei por elencá-las e desmontá-las. Deixarei de parte, naturalmente, juízos de valor feitos a partir da sua perceção individual, tendo como base aparentes preconceitos e sem ser seguido um pensamento imparcial, racional e objetivo sobre os acontecimentos. Comecemos então:

MST afirma que “Muitas das coisas que os professores exigiam eram justas e legítimas, mas nenhum Governo foi tão longe em reconhecê-las e concedê-las como este…”.

Esta afirmação é curiosa, no sentido em que MST, tal como muitos outros, assume a justiça de muitas “coisas” que são exigidas pelos professores, mas esbarra na tentativa de tentar passar para a opinião pública a ideia de que nenhum outro governo foi tão longe: o governo que esteve em funções apoiado pelo Bloco de Esquerda e pela CDU, comummente chamado de “geringonça”, encontrou uma fórmula dita equitativa para repor apenas 1/3 – 2 anos, 9 meses e 18 dias (2a-9m-18d) – dos 9 anos, 4 meses e 2 dias (9a4m2d) do tempo de serviço congelado dos professores (na Parte 2 deste artigo, demonstrarei o logro dessa fórmula).

Essa medida teve um impacto direto em todos os docentes afetados pelo referido congelamento: todos, sem exceção, viram ser contabilizados o mesmo tempo de serviço congelado.

Ora, o atual governo encontrou uma outra fórmula, que apelidou de “correção de assimetrias decorrentes do congelamento da carreira”, que se consubstancia, resumidamente, no seguinte: 

  • apenas os docentes que se encontram acima do 7º escalão (a carreira docente possui 10 escalões) verão ser contados 1 ano dos 6 anos, 6 meses e 23 dias (6a-6m-23d) “em falta”;
  • na contagem, até 6a-6m-23d, do período em que alguns docentes estiveram “presos” em escalões sujeitos a quotas e que, por isso, não puderam progredir (exemplo: se um docente esteve “preso” entre o 4º e 5º escalões durante 2 anos, receberá esses 2 anos);
  • a inexistência de quotas nas passagens dos escalões que a elas estão sujeitos (acesso ao 5º e ao 7º escalões) para os restantes docentes que tenham tido os 9a4m2d congelados. 

Resumindo, o atual governo encontrou uma “fórmula” para oferecer bastante (e legítimo) a poucos (os que estiveram presos devido às quotas), muito pouco a alguns (1 ano dos 6a-6m-23d aos do 7º para cima) e praticamente nada à maioria dos docentes (apenas acabou com o constrangimento das quotas de acesso ao 5º e 7 º escalões).

Ou seja, a solução encontrada pelo governo da chamada “geringonça” – que não repôs uma elementar justiça -, ao contrário do que afirma MST, conseguiu, ainda assim, ir “mais longe” do que a encontrada por este governo.

MST elenca “quatro revindicações “ditas profissionais” pelas quais os professores se têm batido.

A primeira, diz ele, “foi o direito a não serem avaliados, para que os medíocres não fossem prejudicados pelos bons: uma longa luta ganha a peso de expedientes, de teimosia e de cansaço do ministério”.

Não há outra forma de o dizer: MST mente ao dizer que uma classe que luta há mais de uma década contra um modelo de avaliação kafkiano não é avaliada. E não há forma mais simples de provar essa mentira do que aqui deixar todas as referências legislativas que regulamentam um processo obtuso, castrador, injusto e que não reconhece o mérito:

  • Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e Professores dos Ensinos Básico e Secundário Decreto-Lei nº 41/2012, de 21 de fevereiro;
  • Despacho normativo n.º 24/2012 de 26 de outubro- Regulamenta o processo de constituição e funcionamento da bolsa de avaliadores externos, com vista à avaliação externa da dimensão científica e pedagógica;
  • Decreto Regulamentar n.º 26/2012, de 21 de fevereiro-Regulamenta o sistema de avaliação do desempenho do pessoal docente da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário;
  • Despacho nº 13981/2012, de 26 de outubro, 2ª série, nº 208: Estabelece os parâmetros nacionais para a avaliação externa da dimensão científica e pedagógica a realizar no âmbito da avaliação do desempenho docente;
  • Despacho Normativo nº 19/2012, de 17 de agosto, 2ª série – nº 159: estabelece os critérios para aplicação do suprimento de avaliação através da ponderação curricular previsto no n.º 9 do artigo 40.º do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, adiante designado ECD, bem como os procedimentos a que a mesma deve obedecer;
  • Despacho nº 12567/2012, de 26 de setembro: Estabelece os universos e os critérios para a determinação dos percentis relativos à atribuição das menções qualitativas aos docentes integrados na carreira;
  • Portaria n.º 266/2012, de 30 de agosto: regulamenta a avaliação do desempenho docente dos diretores de agrupamentos de escolas ou escolas não agrupadas, dos diretores dos centros de formação de associações de escolas e dos diretores das escolas portuguesas no estrangeiro nos termos previsto no Estatuto da Carreira Docente dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário;
  • Decreto-Lei n.º 22/2014, de 11 de fevereiro: estabelece o regime jurídico da formação contínua de professores e define o respetivo sistema de coordenação, administração e apoio;
  • Circular B18002577F/2018 da DGAE, de 9 de fevereiro — Requisitos de progressão na carreira: formação contínua e observação de aulas;
  • Nota informativa da DGAE sobre ADD/2019, de 15 de janeiro — Avaliação de desempenho docente;
  • Despacho n.º 779/2019, de 18 de janeiro: define as prioridades de formação contínua dos docentes, bem como a formação que se considera abrangida na dimensão científica e pedagógica;
  • Nota Informativa da DGAE sobre ADD e Formação Contínua/2020, de 15 de junho — Avaliação de desempenho e formação contínua;
  • Circular B20028014G/2020, da DGAE, de 14 de abril – Formação contínua, avaliação do desempenho docente e observação de aulas;
  • Despacho n.º 6851-A/2019, de 31 de julho: procede à alteração do Despacho n.º 779/2019, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 13, de 18 de janeiro de 2019, que define as prioridades de formação contínua dos docentes, bem como a formação que se considera abrangida na dimensão científica e pedagógica;
  • Despacho n.º 2053/2021, de 24 de fevereiro: procede à segunda alteração do Despacho n.º 779/2019, de 18 de janeiro, alterado pelo Despacho n.º 6851-A/2019, de 31 de julho, que define as prioridades de formação contínua dos docentes, bem como a formação que se considera abrangida na dimensão científica e pedagógica.

O leitor deve, naturalmente, ter ficado surpreendido com a quantidade de legislação afeta ao processo de avaliação docente. Como pode então MST dizer que “… foi o direito a não serem avaliados…, uma longa luta ganha a peso de expedientes, de teimosia e de cansaço do ministério”? Como é possível fazer tal afirmação? É caso para dizer que é mais um mistério.

A segunda reivindicação dos professores, refere MST, “foi o direito a trabalharem cada vez menos e reformarem-se ou beneficiarem de “horários zero” cada vez mais cedo, à conta do “desgaste rápido”: outra luta que vem sendo ganha paulatinamente, ano após ano.

Mais uma vez MST mente sobre algo que é facilmente demonstrável: o número de professores com horário zero (horários sem componente letiva) reduziu de 13.000 em 2012 para cerca de 600 em 2022.

Mais “…uma luta ganha paulatinamente…”?

Sim, caro leitor, é incompreensível a deturpação da realidade: em 10 anos foram reduzidos mais de 12.400 horários zero, mas MST tenta passar a ideia de que esse número aumentou.

Vamos, ainda sobre essa afirmação, a outro “erro” inexplicável: o artigo 79º do Estatuto da Carreira Docente (ECD) que prevê a possibilidade do pessoal docente beneficiar de reduções na componente letiva, tendo em conta a sua idade e o tempo de serviço, sofreu alterações que, ao contrário do que afirma MST, fizeram com que as mesmas reduções começassem apenas aos 50 anos (e 15 anos de serviço docente), quando antes começavam aos 40 anos (e 10 anos de serviço docente), como podemos constatar pela comparação do artigo 79º do Decreto-lei 139-A/90, de 28 de Abril, e do mesmo artigo do Decreto-Lei n.º 15/2007, ainda em vigor no atual Estatuto da Carreira Docente:

Artigo 79.º, do DL nº 139-A/90:

Redução da componente letiva.

1 – A componente letiva a que estão obrigados os professores dos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e os do ensino secundário e do ensino especial é sucessivamente reduzida de duas horas, de cinco em cinco anos, até ao máximo de oito horas, logo que os professores atinjam 40 anos de idade e 10 anos de serviço docente, 45 anos de idade e 15 anos de serviço docente, 50 anos de idade e 20 anos de serviço docente e 55 anos de idade e 21 anos de serviço docente.

Artigo 79.º, DL nº 15/2007 (articulado em vigor):

1 – A componente letiva do trabalho semanal a que estão obrigados os docentes dos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico, do ensino secundário e da educação especial é reduzida, até ao limite de oito horas, nos termos seguintes: a) De duas horas logo que os docentes atinjam 50 anos de idade e 15 anos de serviço docente; b) De mais duas horas logo que os docentes atinjam 55 anos de idade e 20 anos de serviço docente; c) De mais quatro horas logo que os docentes atinjam 60 anos de idade e 25 anos de serviço docente.

Como fica facilmente demonstrável para o leitor, Miguel Sousa Tavares erra, mente e distorce a verdade no seu artigo de opinião.

Em troca de quê? Por que motivos? Não sabemos e provavelmente nunca viremos a saber.

Certo é que este texto já vai longo e ainda não foi possível desmontar todas as suas inverdades. Ficará para uma Parte II, onde também irei ao encontro do exposto no título deste artigo: “Onde estava Miguel Sousa Tavares durante os tempos da troika?”, em que também demonstrarei que, ao contrário da maior parte dos trabalhadores deste país, sejam eles do sector público ou do sector privado, uma determinada casta de privilegiados não sentiu nem uma leve brisa durante esses tempos de fortes tempestades.

Continua.

Maurício Pereira de Brito


Referências

  1. Mill, John Stuart. On Liberty. Edited by Stefan Collini. Cambridge University Press, 1989.
  2. Kant, Immanuel. Groundwork of the Metaphysics of Morals. Translated by Mary Gregor. Cambridge University Press, 2012.
  3. Sartre, Jean-Paul. Existentialism is a Humanism. Translated by Carol Macomber. Yale University Press, 2007.
  4. Nietzsche, Friedrich. Thus Spoke Zarathustra. Translated by R.J. Hollingdale. Penguin Books, 2003.
  5. Rawls, John. A Theory of Justice. Revised Edition. Harvard University Press, 1999.
  6. Nussbaum, Martha C. Creating Capabilities: The Human Development Approach. Harvard University Press, 2011.
  7. Smith, Adam. An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations. Edited by R.H. Campbell, A.S. Skinner, and W.B. Todd. Oxford University Press, 1976.

 
Total
0
Partilhas
Artigos Relacionados
x